Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
O ano era 1970. Junto com vários médicos latino-americanos eu fazia um curso de medicina comunitária em Israel; programa puxado, que incluía diversas viagens pelo país. Uma tarde estávamos num ônibus, voltando de uma visita a hospitais do sul, quando, de surpresa, o coordenador anunciou que faríamos uma parada no kibutz Sde Boker para visitar uma figura lendária: o ex-primeiro-ministro de Israel David Ben-Gurion, já retirado da vida pública. Chegamos ao kibutz, em pleno deserto do Neguev, e lá estava ele, um homenzinho baixo, atarracado, cabeleira branca, a esperar-nos diante de sua modesta casa. Vamos conversar, disse, e de imediato e com a maior simplicidade, sentou-se no gramado. Depois de alguma hesitação - alguns dos doutores ali eram muito cônscios de sua importância - nos sentamos também. O diálogo nada teve de especial, mas ficou-me a imagem de Ben-Gurion, ali sentado como um patriarca do deserto rodeado de discípulos.
David Ben-Gurion gostava de pensar em si próprio como um patriarca judaico. E tinha boas razões para isto. Nascido David Gruen (Polônia, 1886), muito cedo começou sua militância política na social-democracia judaica. Emigrou para a então Palestina em 1906, trabalhou na agricultura, ajudou a formar a Histadrut, a Confederação Geral do Trabalho israelense, da qual foi primeiro-secretário. Sua carreira política chegou ao auge em maio de 1948, quando, na qualidade de titular do governo provisório, e depois da partilha da Palestina pela ONU, proclamou o Estado de Israel. "Não sinto alegria", confidenciou a um amigo logo depois da cerimônia, "só uma terrível ansiedade." Com razão: de imediato, o novo Estado foi atacado pelas poderosas forças de seus vizinhos árabes. Ben-Gurion comandou, com sucesso, a resistência, mesmo porque tinha aprendido uma lição com o Holocausto: "Nosso crime foi a fraqueza. Deste crime, não seremos culpados de novo". Apesar disto, não era linha dura, muito menos um belicista. Foi o primeiro a falar na fórmula "territórios pela paz", isto imediatamente após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. "Não precisamos do Golan", disse, na ocasião. O altiplano do Golan é ainda hoje motivo de atrito entre Israel e Síria.
Não só nisto manifestou-se a heterodoxia de Ben-Gurion. Durante seu governo surgiu o famoso caso Shalit: o comandante Shalit, casado com uma não-judia, queria que seu filho fosse reconhecido como judeu, ao que os religiosos se opunham, alegando que judeu é o que nasce de mãe judia. "Se um ser humano me diz que é judeu", declarou Ben-Gurion, "eu o aceito como judeu." E isto veio a acontecer com centenas de emigrantes vindos da Rússia, gente cuja única vinculação com o judaísmo era a identificação emocional.
Tais opiniões valeram-lhe muitos inimigos. Morreu em Sde Boker há exatos 25 anos, em 1º de dezembro de 1973. O patriarca do deserto cansara de lutar.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"