Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Num encontro com escritores judeus de vários países, reunidos em Israel, o conhecido romancista A. B. Yeoshua declarou peremptoriamente: "A literatura judaica é a literatura israelense". Com isso, excluía da literatura judaica nomes como Saul Bellow, Philip Roth e mesmo Isaac Bashevis Singer. A afirmativa, como é fácil imaginar, causou polêmica - apenas uma a mais entre as muitas que tornam a vida judaica qualquer coisa, menos monótona.
Falar em judaísmo é falar em texto. Poucas culturas valorizam tanto a palavra escrita. Livro, para um judeu, é objeto de reverência. Isso não é de se estranhar num grupo humano que teve na Bíblia - registro histórico, código de ética, e por último, mas não menos importante, narrativa poderosa - a primeira fonte de sua identidade. Mas essa referência comum não implica necessariamente uma literatura em comum. Com a dispersão, os destinos judaicos se multiplicaram, e também os costumes, os cenários, e até mesmo os idiomas: os judeus da Europa Oriental falavam o iídiche, uma mistura de alemão e hebraico, enquanto aqueles que viviam na Espanha (e que depois se dispersaram pelos Bálcãs, pela Turquia e pelo norte da África) expressavam-se em ladino, uma espécie de espanhol arcaico. A partir do século 19, movidos por um ideário político, judeus começaram a retornar à Palestina com o propósito de formar um Estado nacional.
Surgiu então um problema: que idioma terá o novo Estado? Depois de muita discussão, optou-se pelo hebraico - um critério sobretudo histórico. A escolha acarretou problemas, às vezes curiosos. A rigor, o hebraico sempre foi uma língua religiosa, litúrgica. O povo usava o aramaico - idioma no qual Cristo provavelmente pregou. A diferença seria mais ou menos aquela que separava o latim culto do latim vulgar, estando o último na origem da língua que falamos. Recuperar o hebraico não foi tarefa fácil: todos os termos criados pelo progresso científico e tecnológico tiveram de ser sintetizados. Mas já no século 19 havia surgido uma vigorosa literatura escrita neste novo-velho idioma. Exemplo é a obra do poeta judeu-russo Chaim Nachman Bialik (1873-1934), autor do dilacerante Cidade da Matança, que descreve um pogrom, massacre de judeus.
Os primeiros poetas e escritores a viver no que é hoje o Estado de Israel eram, com freqüência, pioneiros dos kibutzim, imbuídos do ideal socialista. É o caso dos poetas Avraham Shlonski, Natan Alterman e Lea Goldberg. Mas o grande nome do período pré-independência é o de S.Y. Agnon, o primeiro e único escritor hebreu a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Nascido na Europa Oriental, Agnon não perdeu de vista suas raízes. Falou da Palestina, sim, mas falou também do shtetl, a aldeia judaica à época do império czarista.
Com a proclamação do Estado de Israel, em 1948, surgiu a literatura israelense propriamente dita. É uma literatura vigorosa, inteiramente comprometida com a problemática do país. De que falam romancistas como Amós Oz (que recentemente esteve no Brasil para lançar seu último livro, Não Diga Noite), A.B. Yeoshua e David Grossman? Falam do kibutz, falam da crise ideológica e política, falam da paz e da guerra. Aharon Appelfeld, outro notável escritor, é visto com certa impaciência pelos leitores jovens: sendo um sobrevivente de campos de concentração, seu tema é o Holocausto, que a nova geração vê como coisa do passado.
É uma literatura seca, tensa, a desses escritores. Não procurem nela o humor judaico de um Scholem Aleichem, muito menos o de um Woody Allen. Humor não é um artigo facilmente disponível no Oriente Médio de hoje, onde conflito é o tema da vida. É uma atmosfera difícil de respirar, diz o poeta Yehuda Amichai em Ecologia de Jerusalém: "O ar em Jerusalém está saturado de preces e sonhos. / Como o ar das cidades industriais, é difícil de respirar. / E de tempos em tempos um novo carregamento de História surge".
A ânsia pelo simples, pelos problemas que fazem o cotidiano de outros povos aparece no poema em prosa Turistas, em que Amichai descreve o que lhe aconteceu depois de ir às compras em Jerusalém: "Sentei-me nos degraus perto da porta na Cidadela de David, com dois pesados cestos a meu lado. Um grupo de turistas estava ali, com seu guia; tornei-me ponto de referência:
‘Vêem aquele homem com os cestos? Um pouco à direita da cabeça dele, há um arco do período romano’. Eu disse comigo: a redenção virá quando o guia lhes disser: ‘Vêem aquele arco do período romano? Não tem nenhuma importância, mas ao lado está um homem que acabou de comprar frutas e verduras para sua família.'".
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
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