Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Numa época – e isso muito antes da reposição hormonal –, eram populares medicamentos que se propunham a devolver a saúde à mulher, regularizando-lhe o fluxo menstrual. O que correspondia a uma clássica visão do organismo feminino. Mulher, de acordo com essa visão, era um útero com apêndices – pernas para caminhar, braços para trabalhar e uma cabeça (para ser coberta com um véu ou para carregar alguma coisa em cima, não para pensar). Mais: em certas culturas, nem mesmo o útero pertencia à mulher. Era considerado um ser com vida própria que, em determinadas circunstâncias, saía do invólucro corporal e voava até “capturar” a semente de uma criança, voltando em seguida para o estaleiro.
Doença de mulher estava ligada a essa peculiaridade constitucional. O exemplo mais significativo é o da histeria, uma palavra que vem do grego hysteros, útero. A mulher ficava histérica por causa do mau funcionamento uterino. Uma variante mais delicada era o “mal do amor”, doença que começou a ser descrita no século 17. Afetava mulheres jovens e belas (o caso de muitas modelos de Rembrandt, Franz Hals, Jan Steen e outros mestres holandeses), e manifestava-se por languidez, tristeza, acessos de choro, dor de cabeça, palidez e uma prostração que levava as moças a passarem o dia no divã ou no leito. É claro que estamos falando da nobreza ou da classe média, porque camponesas ou trabalhadoras não podiam sofrer do “mal do amor” – tinham de dar duro. A doença era tratada com dieta, emplastros, remédios. Mas o medicamento mais adequado era o casamento. Comenta um personagem de Molière ao pai de uma jovem portadora do mal do amor: “Para os males de sua filha, o melhor remédio é um marido”.
Mulher podia adoecer – mas não podia curar. Até o século 19, a profissão médica estava praticamente vedada ao sexo feminino. Quando a Universidade de Edimburgo admitiu as primeiras alunas, a grita foi tal que a reitoria resolveu tomar providências – expulsando as jovens, consideradas culpadas de “provocação”. Por esta mesma universidade formou-se o médico James Barry, que chamava a atenção por seu tipo físico delicado, e que era – descobriu-se quando de sua morte – uma mulher (foi enterrado como homem, para evitar o escândalo). Em Filadélfia, as mulheres optaram por criar a sua própria escola médica – malvista pelos profissionais homens, que viam nisso uma manifestação da “pestis mulieribus”, a peste das mulheres a atormentar o mundo.
No Brasil, as três primeiras médicas eram gaúchas: Rita Lobato (de Rio Grande), Ermelinda Lopes de Vasconcelos (Porto Alegre) e Antonieta Cesar Dias (Pelotas). Quando Ermelinda recebeu o diploma (em 1888, ano da abolição da escravatura), o historiador Sílvio Romero escreveu uma crônica dizendo: “Esteja certo a doutora que seus pés de machona não pisarão o meu lar”. Tempos depois, Ermelinda fez o parto da mulher de Romero. Uma boa resposta para o machista. Que a esta altura não se atreveria a escrever desaforos: as moças representam a metade dos médicos formados no Brasil.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor" - 08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins" -01/07/2006: "Uma reabilitação histórica" -08/02/2004: "Dilemas caninos"
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