Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.

Médico recém-formado, fui trabalhar numa instituição geriátrica. Os quartos, confortáveis, eram para duas pessoas, em geral viúvas (a terceira idade não poupa os homens). Mas havia também casais. Um deles me era particularmente simpático: os dois magrinhos, pequeninos, e até parecidos, uma coisa que acontece em matrimônios de longa duração: rindo ao mesmo tempo, chorando ao mesmo tempo, as feições acabam por se tornar semelhantes. E foi com esse casal que aconteceu um episódio insólito. E comovedor.
Uma tarde, a atendente foi chamá-los para tomar café. Bateu à porta, e como não respondessem, entrou (explicação necessária: as portas lá não eram chaveadas, para evitar que alguma pessoa, trancada no quarto, não pudesse ser atendida numa emergência).
Para surpresa da atendente, o casal não estava ali. O que imediatamente gerou pânico: o que teria acontecido com os velhinhos? Era pouco provável que tivessem saído - os dois moviam-se com dificuldade. Um sequestro? Impossível. A segurança do local era muito boa. Além disso, quem sequestraria um casal idoso - e pobre?
Cerca de 15 minutos depois, contudo, o mistério foi desfeito. A porta do armário de roupas, um armário razoavelmente grande, abriu-se, e de lá saíram os sorridentes velhinhos. Aquele era o lugar em que se refugiavam para ter relações sexuais sem ser perturbados.
O que não deixa de ser simbólico. Na gíria gay dos Estados Unidos, to come out of the closet, sair do armário, significa assumir a homossexualidade. Para assumir a sua sexualidade, os velhinhos tinham de, ao contrário, entrar no armário. Aquele era o seu ninho de amor. Entre vestidos e casacos, reencontravam, quem sabe, a antiga paixão. O armário era a cápsula espacial na qual viajavam pelo universo do amor. Um recinto pequeno, confinado, mas, quem disse que a paixão precisa de amplitude? Os amantes falam em "ninho", e nada menor que um ninho em termos de acomodação sentimental.
Existem formas de sexo que demandam muito espaço e muito equipamento - os colchões de água eram um exemplo disso. Mas o amor é diferente. O amor só precisa de tempo, não de espaço. E tempo era coisa que não faltava ao casal. Longos anos de convivência no passado, lazer bastante no presente.
Já faleceram, o velhinho e sua velhinha. Tenho certeza de que, no céu, ocupam um espaço reservado especialmente para eles: um armário muito grande. Lá, entre as harpas dos anjos e as túnicas dos santos, continuam, como sempre, fazendo amor.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"