Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Não foi o anjo-da-guarda que guiou os primeiros passos de minha geração literária, foi o anjo de García Márquez. E como era este anjo? Esqueci o nome do conto em que era mencionado, mas estava longe de ser um querubim rechonchudo. Tratava-se de um anjo velho, desdentado, com as asas cheias de piolhos, um anjo que cai do céu numa aldeia colombiana e é aprisionado em um galinheiro, onde a população vai visitá-lo - pagando ingresso, naturalmente.
O realismo fantástico nos fascinou de imediato. Em primeiro lugar porque permitia livres vôos da imaginação; depois, porque era uma resposta irônica e, não raro, corrosiva ao clima de repressão então vigente na América Latina: Kafka mais gozação subdesenvolvida, o que parecia uma fórmula imbatível. Logo estávamos povoando nossa ficção com os mais diversos seres alados. Mas o mestre indiscutível desta arte era mesmo García Márquez. Na década de 70, seus livros estavam em todas as livrarias da Europa, uma consagração que o prêmio Nobel veio apenas referendar. Na esteira de seu sucesso vários escritores conquistaram o público internacional: Vargas Llosa, Julio Cortazar e até mesmo Borges, criador de um supra-realismo muito peculiar, intelectualizado e filosófico, mas nem por isto despido de humor. Todas estas obras vieram a constituir o chamado "boom" latino-americano. A literatura do continente passou a ser sinônimo de realismo mágico. O seu duplo componente era irresistível; de um lado, o exotismo, que já tinha popularizado a obra de Jorge Amado (e que foi obrigado, ele também, a aderir à nova onda); de outro, o engajamento político, do qual Gabo era o maior exemplo. Não apenas defendia a Cuba de Fidel Castro, como passou a residir lá parte do ano, dando aulas na escola nacional de cinema do país. No Brasil, a sua obra foi revelada ao público pela desaparecida Editora do Autor, fundada por Rubem Braga e Fernando Sabino. Foi uma verdadeira revelação, e um êxito instantâneo - graças também às excelentes traduções (as últimas a cargo de Eric Nepomuceno, amigo de Gabo).
O tempo passou e a situação mudou. As ditaduras do continente foram caindo uma a uma; seu esquema de sustentação era arcaico demais para subsistir. Em termos políticos, a ditadura tinha um mérito: unificava todas as formas de oposição, todas as formas de contestação. A queda dos governos ditatoriais criou um vácuo político e cultural, no qual precipitaram-se o cinema novo e os festivais da MPB, o tropicalismo e os jornais alternativos tipo O Pasquim, o teatro do oprimido de Augusto Boal, e o realismo fantástico. De repente, a América Latina já não era mais a região exótica do globo; era, isto sim, um reduto de mão-de-obra barato pronto a ser incorporado na economia globalizada. As fábricas de imaginário foram substituídas pelas fábricas maquiladoras que surgiram como cogumelos na fonteira entre México e Estados Unidos. A Colômbia parou de exportar sonhos literários para exportar os sonhos - os pesadelos - da coca. O último livro de García Márquez, Notícias de um Seqüestro, que trata justamente do narcotráfico, já não é ficção, mas sim reportagem - ele voltou aos seus tempos de jornalista.
Há alguns anos encontrei García Márquez num encontro de literatura em Aix-en-Provence, na França. Um homem simpático, muito simples, espantosamente popular. Cada vez que entrava no saguão do auditório onde se realizavam as sessões, era acompanhado por um verdadeiro exército de jornalistas e fotógrafos. Entrevistá-lo, a propósito, não é uma tarefa fácil, nem barata: para uma grande rede de televisão, uma exclusiva podia custar, segundo me disse (em tom queixoso) um jornalista da Globo, US$ 30 mil. Para quem escreveu seu livro atolado em dívidas não está mal. A verdade é que a fama às vezes cansa - e a pobreza cansa muito mais. García Márquez provavelmente estava se defendendo das duas coisas.
No que não está sozinho. América Latina tenta ser menos fantástica e mais realista - não por acaso a nossa atual moeda chama-se real. O imaginário já não é produção local; é importado, sob a forma dos efeitos especiais que recheiam os filmes americanos. O anjo de García Márquez foi expulso do galinheiro, agora transformado numa indústria de frangos de exportação. Menos riqueza espiritual, mais divisas na balança de pagamentos. Melhorou? Você decide.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
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