Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
A versão cinematográfica de O mercador de Veneza, dirigida com mão segura por Michael Radford e em cartaz nos cinemas, traz de volta antiga questão: é a peça de Shakespeare anti semita? Para responder, vamos primeiro resumir o enredo. O jovem Bassanio (Joseph Fiennes) diz ao amigo Antonio (Jeremy Irons) – este é o mercador, não Shylock – que precisa de dinheiro para a corte à rica herdeira Portia (Lynn Collins).Com o capital empatado em mercadorias transportadas por navios, Antonio aceita ser fiador de empréstimo que Shyock (Al Pacino) faz a Bassanio.
Shylock, que várias vezes foi ofendido e agredido por Antonio, pede como garantia uma libra da própria carne deste. O mercador concorda. Bassanio casa com Portia, mas aí ocorre o inesperado: navios de Antonio naufragam, ele não tem como pagar a dívida. O caso vai a juízo e Antonio é salvo por Portia que, disfarçada de advogado, apresenta um argumento decisivo: Shylock poderá cortar uma libra da carne do mercador, mas sem derramar o sangue do cristão, proibido aos judeus. O usurário é assim derrotado.
Shakespeare baseou-se em fatos reais. Na Idade Média, muitos judeus eram usurários. Não por escolha própria. O empréstimo de dinheiro a juros era proibido pela religião cristã; mas, ao mesmo tempo, os senhores feudais necessitavam de dinheiro para expedições guerreiras, para bens de luxo. O jeito foi empurrar a usura a um grupo humano marginalizado e perseguido. O que tinha uma vantagem em caso de inadimplência: promovia-se um massacre de judeus, extinguindo a dívida. Com o fim da Idade Média e o advento do mercantilismo, o Ocidente já não rejeita o dinheiro; ao contrário, vai em busca. Shylock dará lugar aos banqueiros. E banco é outro assunto; é o templo do dinheiro. Daí a arquitetura imponente, as altas colunas, a luxuosa decoração. Nada de usurários de nariz adunco e olhar furtivo extraindo o dinheiro de suas vestes.
Shylock é um personagem em vias de extinção. Mas não é esta a causa, ou a única causa de sua amargura, a qual explica o estranho penhor exigido. De que lhe serve a carne de Antonio? Por que não pede garantia em dinheiro, em bens?
Neste momento, Shylock está funcionando como um anticapitalista. E o faz movido por um arcaico ressentimento. Ele quer a carne de Antonio por vingança, porque não pode obter do mercador o respeito e o afeto que deseja. São admiráveis as palavras que Shakespeare coloca na boca de Shyock, num discurso em que o extraordinário Al Pacino se supera e que se constitui no auge do filme: “Sou judeu e sou humano”. E pergunta: não têm os judeus afetos, paixões, não são vulneráveis aos mesmos agravos que os cristãos, não sentem frio ou calor? “Se vocês nos espetam, nós não sangramos?”
Sangrar é importante. Ele quer que, sangrando, Antonio lembre que os judeus também têm sangue. É claro que mais adiante Shakespeare castigará o usurário, dando a peça o “final feliz” que sua audiência provavelmente esperava e que, este sim, tem uma conotação anti-semita.
O mercador de Veneza pode, portanto, ser dividido em duas partes, aquela em que Shylock aparece como um atormentado ser humano, e que é essencialmente shakespeariana, e o final, uma concessão ao aristocrático público que então frequentava o teatro, e de quem o dramaturgo dependia para viver: dinheiro é importante. Mas há coisas mais importantes, e é isto que Shylock nos diz, enquanto pode falar. Enquanto não é para sempre derrotado.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
Leia também:
Carta da editora: "Scliar, nos bastidores"
Moacyr Scliar, 80 anos. O que fica de sua obra
Acesse a página oficial do escritor