Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
A batalha final não será travada entre o Bem e o Mal ou entre os identificadores nos aeroportos brasileiros e americanos. A batalha final será travada entre os que gostam e os que não gostam de cachorros. Pelo menos é o que deduzo de avisos que estão sendo colocados nos postes de iluminação nas ruas do meu bairro. Um deles adverte severamente os donos de cães que devem andar com um saquinho plástico, a fim de recolher o cocô dos bichos. Outro, na rua São Manoel, remete ao que deve ser um problema mais sério. Diz que cães estão sendo envenenados e adverte que esse procedimento pode ter consequências sérias, inclusive para crianças.
Cada vez há mais gente criando cachorros, o que se constata, inclusive, pela proliferação das Pet Shops (já são quase em número igual ao das farmácias). Era previsível; estamos seguindo o modelo europeu e americano. À medida que baixa a taxa de natalidade aumentam os animais de estimação. Os europeus, inclusive, não hesitam em dizer que substituíram as crianças pelos cachorros, que, segundo eles, dão menos trabalho e são menos ingratos; e dão, podemos acrescentar, testemunho de um egoísmo que não é pequeno. Por outro lado, cães tem seus inimigos. Em primeiro lugar pela óbvia razão de que alguns animais são agressivos e mesmo perigosos (claro: foram treinados para isso). Perguntem aos carteiros e aos entregadores de pizza o que acham do cachorro que, do portão, ladra ameaçador.
Existe aí uma questão até filosófica, com conotações surrealistas. No ano passado surgiu nos Estados Unidos um curioso livro sustentando a tese de que não fomos nós que domesticamos os cães, eles é que nos domesticaram. Ensinaram-nos a cuidar deles, a providenciar sua alimentação, em troca de muito pouco.
Como é fácil imaginar, nesta briga os cachorros são apenas cavalo (ou cão, melhor dizendo) de batalha. A disputa é, na verdade, entre pessoas. E não precisa existir. A convivência pode, sim, ser pacífica. Criar cães é uma coisa afetiva. Nesta época de vidas solitárias todo canal que permita comunicação de afetos é válido. É melhor gostar de cachorros do que não gostar de criatura alguma.
Alguém dirá que há muito garoto de rua esperando por afeto, e é verdade. No ano passado, foram gastos mais de um milhão de dólares para salvar uma baleia encalhada. Um milhão de dólares poderia salvar muitas crianças brasileiras, só que, elas, infelizmente não estão encalhadas no gelo, estão encalhadas nas ruas das grandes cidades, entre o crime, a violência, o tráfico de drogas, o desemprego. E não são um espécime em extinção, como alguns queriam que fossem. Uma coisa, porém, não elimina a outra. Nada impede que as pessoas interessadas na preservação de baleias cuidem de crianças; aliás, frequentemente é o que acontece, porque quem tem consciência para uma coisa, tem consciência para muitas coisas.
A casa dos afetos tem muitas portas. E algumas delas têm, à sua frente, um cachorrinho abanando o rabo.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor" -08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins" -01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"