Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
O ano era 1975, época da ditadura militar. Como muitas vezes acontecia então, um jornalista foi detido: era Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura de São Paulo. Levado para a carceragem, no dia seguinte estava morto. Versão oficial: suicídio por enforcamento.
Herzog era judeu. Na religião judaica, os suicidas não podem ser sepultados junto com outras pessoas, e sim em lugar à parte no cemitério, ao pé do muro. A decisão de onde seria enterrado era aguardada, por isso, com expectativa: ela endossaria ou não a ideia de suicídio.
Herzog não foi enterrado ao pé do muro. E quem tomou a decisão foi um jovem rabino recém chegado ao Brasil, Henry Sobel. Sua corajosa posição repercutiu intensamente e deu início a uma carreira surpreendente. Sobel logo se caracterizou como um homem do diálogo e de ideias avançadas: ideias que não deixavam de provocar controvérsia na comunidade judaica, mas que o transformaram numa figura de vanguarda em nosso país. E aí acontece algo surrealista: este homem é preso, nos Estados Unidos, roubando gravatas. Gravatas que certamente Sobel poderia comprar. Sua perturbadora conduta mostra como são complicados e imprevistos os labirintos da mente humana. Homem inteligente, sensato, Sobel não faria o absurdo que fez se estivesse naquilo que chamamos de “o seu normal”. Mas ele não estava em “seu normal”. Só com a prisão deu-se conta do que tinha feito.
Um incidente grotesco, mas também uma tragédia, atingindo uma figura importante no debate brasileiro. Com o que, descobrimos, penosamente, que mesmo líderes expressivos são seres humanos, sujeitos às vaidades, às fraquezas e às doenças que acometem os seres humanos.
Agora vejam a ironia: quando os imigrantes judeus chegaram ao Brasil, e particularmente a São Paulo, muitos deles tornaram-se vendedores ambulantes de gravatas. Naquela época, ninguém podia entrar num banco (sobretudo para pedir um empréstimo) sem gravata. Era um comércio modesto, mas com público certo, e foi até celebrado por Adoniran Barbosa num samba famoso: “Jacó/ o senhor me prometeu/ uma gravata...”
A gravata era, para os vendedores, um meio de sobrevivência. Mas era também, e continua sendo, um símbolo de status. Um símbolo que, para Henry Sobel, custou caro, absurdamente caro – mais caro que o obsceno preço em dólares. Este absurdo nos remete, ainda que metaforicamente, às contradições inerentes à condição humana e contra as quais nem a cultura, nem a sabedoria servem como antídotos. Destas contradições deram-se conta os ouvintes do Polêmica de ontem: no seu “veredicto” (é crime, é doença) eles se dividiram num 52% x 48%, que representa um empate técnico. Empate este que é o símbolo de nossa humanidade, e que nos lembra a frase do escritor latino Públio Terêncio, que viveu por volta do segundo século antes de Cristo: “Sou humano, e nada do que é humano me é estranho”.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-03/04/2007: "A mulher e sua saúde"