Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
“Ser mãe é andar chorando num sorriso/Ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ Ser mãe é padecer num paraíso.” Com estes versos Coelho Neto termina o seu famoso soneto sobre a mãe, numa época componente obrigatório de antologias escolares. O que chama a atenção aí? São os paradoxos: chorar sorrindo, ter um mundo e não ter nada, sofrer num paraíso. Coelho Neto não escreveu nenhum soneto sobre ser pai, mas, para este, certamente, não lhe faltariam paradoxos. Para começar, tornar-se pai é uma alegria imensa combinada com um susto enorme. A alegria é basicamente a alegria da vida que começa, e que, em começando, dá continuidade a este imenso ciclo vital do qual somos apenas minúsculos componentes. Mas a vida começa com riso e começa com choro, começa com deslumbramento e começa com susto. O bebê é, antes de mais nada, uma criatura enigmática, ainda entregue ao determinismo de sua biologia. O bebê vai chorar, vai urinar na cama, vai ter febre, vai adoecer, tudo de repente, tudo da maneira mais inesperada, tudo da maneira mais ansiogênica. Ser pai é conhecer um tipo de ansiedade completamente desconhecida, uma ansiedade que é temida e ao mesmo tempo bem-vinda.
Não é de admirar, portanto que muitos jovens tenham, diante da paternidade uma atitude também paradoxal. Querem ser pais e não querem ser pais. Querem ser pais porque este é um impulso natural em todo o ser humano; mas não querem ser pais porque o mundo em que vivemos lhes causa apreensão. É um mundo de não poucos riscos: a violência, o desemprego, a insegurança, enfim. Como é que eu vou botar uma criança num mundo desses, é a pergunta que muitas vezes a gente ouve desses jovens. Paternidade assusta; se, voltando a Coelho Neto, ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração, ser pai aparentemente significa ter um coração de aço, resistente a qualquer tipo de susto, a qualquer tipo de emoção. Ser pai é ser o Super-Homem.
O fato é que o Super-Homem nunca teve filhos. Clark Kent, como ele se chama na vida real (?), tem uma paixão absolutamente platônica pela repórter Lois Lane. E só pode ser platônico, mesmo. Porque o Super-Homem é todo de aço. O que não o torna, convenhamos, o parceiro sexual ideal, ao menos para seres humanos.
Super-Homem não tem filhos, Super-Homem não enfrenta paradoxos, ele passa voando por cima deles. Nós, criaturas de carne e osso, não temos essa sorte. Nós temos outra sorte; nós podemos ter filhos, podemos criá-los, podemos vê-los transformando-se em homens e mulheres.
Vale a pena? Como diz Pessoa, tudo vale a pena quando a alma não é pequena (e quando o coração não é de aço).
Sim, ter filhos é arriscado. Sabia disso aquele outro poeta, Vinicius de Moraes quando garantiu: “Filhos, melhor não tê-los”, para acrescentar em seguida: “Mas se não temos, como sabê-lo?”
Belo paradoxo, hein? Belo paradoxo. Vale a pena ter filhos, mesmo pagando o preço do medo, para criar um paradoxo assim. Ah, e vale a pena criar filhos. Mesmo diante dos paradoxos da vida. Que são, claro, os paradoxos da paternidade.
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