Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Numa competição como a Olimpíada, dois verbos são fundamentais. O primeiro deles é superar. Superar o adversário, bem entendido. Olimpíada é competição, e a regra em competição sempre é: que vença o melhor. Daí o pódio, a coroa de louros, as medalhas. Vencer é bom, principalmente quando a vitória corresponde às aspirações de todo um país que lá está, torcendo por seus atletas.
Há um outro verbo, semelhante ao primeiro, mas menos mencionado: superar-se. Este “se”, esta partícula apassivadora, aí é importante. Aliás, a denominação apassivadora no caso não é adequada. A conjugação do verbo “superar-se” não é feita por alguém numa situação de passividade, bem ao contrário. Trata-se de competição, dura competição, só que praticamente invisível. “Superar-se”, em termos de exercício atlético, significa vencer a si próprio, num momento em que se estabelece um claro conflito entre corpo e mente. Não posso mais, diz o corpo ao nadador, ao corredor, ao judoca, ao ginasta. Tu podes mais, diz a mente ao corpo, eu sei que tu podes mais. Superar-se é a vitória da mente sobre o corpo. E isto tem até expressão fisiológica. Quando respiramos, mesmo de forma acelerada – caso do exercício físico – nunca conseguimos renovar completamente o ar dos pulmões; fica lá dentro o chamado volume residual, cerca de um litro. Os atletas experientes recorrem àquilo que é chamado o “segundo fôlego”. No final de cada expiração, e contraindo certos músculos, fazem com que as costelas pressionem os pulmões, eliminando o ar residual, aumentando a renovação de ar, fornecendo ao corpo o oxigênio de que precisa para continuar a competição.
Segundo fôlego é uma grande expressão, inclusive do ponto de vista simbólico. Podemos, sim, eliminar de nossas vidas o ar residual, inútil, representado pela amargura, de frustração, de desânimo. Isto é superar-se. E superar-se é possível – e necessário: muitas vezes precisamos nos superar. Às vezes fisicamente; quando eu atendia no Posto de Saúde da Lomba do Pinheiro muitas vezes vinha consultar-me uma mulher débil, magrinha, que trazia a criança em seus braços. Ela fazia mais de 10 quilômetros a pé – uma sobrecarga física impressionante. No caminho muitas vezes deve ter sentido que as forças lhe faltavam; mas sabia que era preciso chegar ao posto, e isto funcionava para ela como o segundo fôlego.
Carlos Stein, com quem escrevi há anos Tempo de Espera, tem uma história muito significativa a respeito. Trata-se de um homem que faz um desafio a si próprio: ele tem de atravessar, a nado, um largo curso. É, para ele, missão quase impossível, e em muitos momentos da travessia ele acha que não terá forças. Finalmente chega a seu objetivo; mas tão logo o atinge, começa a nadar de novo, rumo ao ponto de partida. Ou seja, um desafio levou a outro. Ao primeiro fôlego seguiu-se o segundo fôlego. E quem sabe não temos um terceiro, um quarto, um décimo fôlego? Vão nadando, meus filhos, vão nadando.
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