Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Durante a maior parte da minha vida, entrei em hospitais na qualidade de médico: aquelas visitas a pacientes que, necessárias e muitas vezes salvadoras, são em geral breves. Mas também acabando sendo hospitalizado, uma vez por acidente e recentemente por uma hérnia de disco, problema que não desejo a ninguém e que me manteve imobilizado por quase duas semanas. Mais uma vez concluí: o hospital, visto do leito, é muito diferente do hospital que o médico vê em suas visitas.
Hospital não é uma coisa nova. Existia desde a antiguidade, mas ganhou impulso com Idade Média; era então um estabelecimento confiado a ordens religiosas, cuja finalidade principal não era curar – muito pouca coisa se curava então – mas garantir ao paciente um mínimo de conforto material e, sobretudo, espiritual. O hospital moderno é um lugar de ciência, de tecnologia. A experiência da doença, contudo, continua a mesma. Envolve desamparo, envolve ansiedade. O paciente hospitalizado fica privado de sua autonomia. Ele é levado de um lado para outro, em maca; e aquela cena, que o cinema tantas vezes mostra, das lâmpadas do teto se sucedendo à medida que a maca avança, passa a fazer parte do cotidiano do doente. Teto é uma coisa que doente vê muito.
O paciente depende de outros para alimentar-se, para a higiene, para fazer suas necessidades, até mesmo para virar-se no leito. É uma situação penosa, sobretudo para pessoas ativas, que se deslocam de um lado para outro, pessoas que estão acostumadas a orientar outras, não a ser orientadas. A dependência remete o adulto para uma fase infantil e ainda que muitos de nós gostemos de bancar as crianças de vez em quando preferimos fazê-lo por vontade própria, não sob o comando do nosso corpo.
O corpo. Em poucos lugares tomamos tanto conhecimento da existência de nosso corpo como no leito do hospital. Porque a verdade é que somos uma caixa preta, ou, se vocês quiserem, uma caixa de Pandora, aquela que, quando aberta, liberta espectros e maldições. Todos temos um rim, mas quantas vezes por dia – ou por mês, ou por ano, pensamos no nosso rim? (Às vezes pensamos equivocadamente: a pessoa que tem dor nas costas e acha que sofre dos rins.) O grande médico Bichat disse que a saúde é o silêncio dos órgãos e é isto que esperamos do nosso corpo: silêncio. Do nosso corpo interior, bem entendido, porque em matéria de aparência externa a coisa pode ser bem diferente. Mas o corpo tem uma existência independente de nossa vontade, de nossa fantasia. Por vezes o corpo se manifesta. E aí ficamos surpresos, quando não aterrorizados, com o caráter e a intensidade dessas manifestações. A dor, por exemplo. A dor resultante da compressão de uma raiz nervosa é excruciante. E nos torna ainda mais dependentes.
Mas de tudo isso se pode aprender coisas. E a primeira coisa que se aprende é: há pessoas que cuidam de outras pessoas. Pessoas que não assaltam, não matam, não sequestram crianças – ajudam. Movidas pela compaixão, pela empatia ou mesmo pela simples necessidade de trabalhar, estas pessoas ali estão, trazendo remédio para o paciente, alimentando o paciente, higienizando o paciente. E isto é suficiente para nos devolver a fé na humanidade. Vivemos num mundo de violência? Sem dúvida. Sempre se viveu em um mundo de violência. Mas o ser humano tem em si os antídotos contra esta violência, e o hospital disso é um símbolo. É um lugar de dor e de sofrimento, mas é também um lugar em que pessoas ajudam outras pessoas, sustentando-as, nutrindo-as, cuidando delas. Se há uma palavra que deveria estar escrita no teto de um hospital, esta palavra é: obrigado.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
-08/06/2010: "Crimes e erros"
-13/06/2004: "O maratonista cego"
-09/11/2010:" Escritores e preconceito"
-10/10/2004: "Quando eu tinha a tua idade"
-21/11/2010: "O primeiro hippie"
-02/09/1995: " Há algum médico a bordo?"
- 13/05/2008: "Israel, 60 anos"