Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Qual foi o brado mais importante da História do Brasil? Independência ou Morte? Acho que não. O brado mais importante para os brasileiros foi e continua sendo, o “Liberou geral”. Duvidam? Então entrem na Internet, que não é só uma gigantesca fonte de informações, é também um microcosmo cultural. Vocês encontrarão 14,4 mil referências a “liberou geral”. Chega de dieta: liberou geral. Justiça europeia admite casamento entre transexuais: liberou geral. Acabou o provão: liberou geral. Faltam critérios para a atual discussão literária: liberou geral. Prefeitura dá anistia fiscal a lojas em zonas residenciais de São Paulo: liberou geral. Há um poema (“Eu só queria matar você de amor”) chamado Liberou Geral. Há uma música (1988) chamada Liberou Geral, lançada pela banda Camisa de Vênus (alguém aí lembra que a camisinha era conhecida por camisa de Vênus, uma homenagem à deusa do amor?). Enfim, esta expressão faz parte da condição brasileira. “Liberou geral” era o anúncio que Waldomiro Diniz gostaria de ter ouvido, sobretudo de suas chefias e, sobretudo, em relação às percentagens que cobrava.
Aspiração frustrada, porém: o anúncio “liberou geral” sempre é feito por um anônimo. Exemplo: um estádio de futebol está enchendo, os porteiros não conseguem conter a multidão. De repente, chega a ordem: liberou geral. Todo o mundo entra, mas quem mandou liberar geral? Não se sabe exatamente. O certo é que não precisa ser um figurão: o muro de Berlim começou a cair quando um obscuro funcionário liberou a passagem dos cidadãos por aquela que fora a grande barreira entre comunismo e capitalismo.
Seja qual for a sua origem, o certo é que a notícia do liberou geral se espalha rapidamente, através daquela cadeia informal de comunicação que se cria nas grandes cidades e que difunde tanto os boatos alarmantes quanto as boas notícias (mais raras). Liberou geral pode começar como um boato, mas logo se transforma em realidade, porque é impossível conter a multidão quando ela é mobilizada pelo liberou geral.
Às vezes o liberou geral ocorre de forma previsível e, até certo ponto, ordeira. Disto, o Carnaval é o grande exemplo. Durante três dias o país vive o clima de liberou geral na alegria, na música, na bebida, no sexo. Não falta quem veja isto com desgosto e até com alarme.
Mas todo o mundo sabe que é preciso, sim, liberar geral, ao menos por um curto período de tempo, ao menos por três dias. Porque depois do Carnaval volta tudo a ser como era antes no quartel de Abrantes.
Mas fica a expectativa. Chegará o Juízo Final e grandes filas se formarão para o derradeiro julgamento. Ali estarão os pobres, os aposentados, os desempregados, todos passando pela triagem, todos colocando suas virtudes e seus pecados nos pratos da Grande Balança. De repente, virá o anúncio: “Liberou geral!” – e todos invadirão, alegres, o Céu, para surpresa dos anjos, dos santos e do próprio Todo Poderoso, que resmungará para si próprio: “Isto só pode ser coisa do Diabo”.
Talvez seja coisa do Diabo, o liberou geral. Mas que funciona, funciona.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"