Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Esses dias ouvi pelo rádio uma notícia dando conta de que, em algum outro lugar do mundo, não consegui identificar qual, também realizava-se uma maratona. O locutor comentava o desempenho de um corredor vindo da Mongólia, que tinha chegado em último lugar, com o pior tempo dos últimos 84 anos. E aí vinha o detalhe: esse homem é cego. Para ele, o desafio havia sido não o de chegar em primeiro, ou em segundo, ou em quinto, ou em décimo: o desafio era terminar a prova. E para este propósito, até que sua deficiência visual ajudava. Ele não via os outros corredores, que certamente o ultrapassavam e se distanciavam. Também não via pessoas torcendo. Aliás, nem via a pista da maratona. Ele corria numa pista interna, a pista de sua imaginação, que, felizmente, coincidiu com a pista real, tanto que ele acabou chegando a seu destino.
Há uma bela lição nessa história, uma lição válida sobretudo para a época atual. Vivemos numa sociedade essencialmente competitiva: é preciso ser o número 1 em qualquer coisa, em audiência, em vendas, em popularidade. O que não é de todo mau. Competir, comparar nosso desempenho com o de outras pessoas, é uma forma de avaliação, não raro muito eficiente, e disso os Estados Unidos são um exemplo: fazendo da competição uma regra de negócios (e de vida) obtiveram extraordinários progressos na área de ciência e de tecnologia. Para vocês terem uma idéia da importância da competição naquele país, façam o teste da Internet: digitem, no Google, a palavra “competition”. Aparecerão mais de 8 milhões de referências. “Cooperation”, que seria o oposto, dá menos: 6 milhões de referências.
É uma competição, não raro, selvagem, uma competição que, como já foi dito, extrai o melhor das coisas e o pior das pessoas. “Winner takes all”, o vencedor fica com tudo (não só as batatas do Machado de Assis). Quanto ao perdedor – não há pior palavra que loser. Como diz um aforisma americano: “Não há bons perdedores. Há perdedores, ponto.”
Estava competindo, o corredor da Mongólia? Claro que estava. Mas estava travando a melhor das competições, a competição contra o desânimo, contra a apatia. O corredor da Mongólia tinha de provar a si próprio – não a adversários – que ele podia, sim, terminar a prova. Dizem que o importante não é vencer, o importante é competir. Não é bem assim. É importante vencer, mas depende de que vitória estamos falando. Vitória contra a fome, vitória contra a miséria, vitória contra a ignorância, estas são grandes vitórias. Vitória contra as próprias limitações também, e foi esta vitória que o homem da maratona obteve.
Agora vejam que coisa interessante: da Mongólia veio também um famoso guerreiro, Gengis Khan. No começo do século 13 e comandando tropas aguerridas, Gengis Khan invadiu a China, Coréia, a Índia, o Irã, o Iraque, a Turquia, a Rússia e outros países europeus. Dizia-se que, onde passavam suas tropas, a grama não cresceria jamais. Khan passou para a história como um exemplo de feroz ambição. Convenhamos: em matéria de competição, o modesto corredor mangol é um exemplo muito melhor.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
-08/06/2010: "Crimes e erros"