Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Há 140 anos, em 1866, um médico inglês chamado John Langdon Down (este sobrenome quer dizer “para baixo” e é, como vocês já verão, muito significativo), que trabalhava numa instituição para crianças com retardo mental, publicou um trabalho intitulado, acreditem ou não, “Uma classificação étnica dos idiotas” (idiotas e imbecis era a maneira como os médicos de então se referiam a crianças com déficit intelectual). No artigo, Down descrevia um grupo de jovens pacientes que tinham características em comum (incluindo a conformação do globo ocular) e que ele rotulou como “mongolóides”. Termo infeliz, duplamente depreciativo: para as crianças, em primeiro lugar, e para o povo da Mongólia. Devemos lembrar que, à época, o colonialismo britânico estava no auge, e muitos povos da África, da Ásia e da América, eram considerados “inferiores”, inclusive e principalmente do ponto de vista do desenvolvimento intelectual. Por incrível que pareça, o termo continuou em uso até os anos 70, quando, depois do protesto de pesquisadores asiáticos, foi abolido. Passou a se falar então em síndrome de Down. Em 1959, dois pesquisadores, Jerome Lejeune e Patricia Jacobs, trabalhando de forma independente, mostraram que a causa da síndrome era a trissomia, ou seja, a triplicação do cromossomo número 21 (lembrando que os cromossomos são os portadores dos genes, nos quais está a nossa carga hereditária). Trissomia 21 é, pelo menos, um termo mais neutro.
O raciocínio de John Langdon Down exemplificava um posicionamento científico, e sobretudo político, que teve vigência durante muito tempo. Esta escola de pensamento se baseava no evolucionismo darwiniano e partia do princípio de que, assim como houvera uma evolução das espécies animais, existia uma evolução das “raças” humanas, algumas estando ainda numa escala inferior do processo. Isto também podia acontecer com pessoas. Assim, os jovens a quem o médico estava vendo tinham tido uma “parada” em seu desenvolvimento intelectual, o que os tornara semelhantes a pessoas das “raças inferiores”: os mongóis, no caso. Mas os mongóis não eram os únicos: os negros também estariam nesta situação, mais próximos dos primatas do que dos brancos europeus, considerados o auge da escala evolutiva. O apelido de “macaquitos” dado aos negros em países da América Latina é uma decorrência desse preconceito.
Vocês pensam que isto é coisa do passado? Estão enganados. Ainda em 1994, dois pesquisadores, Murray e Herrenstein, publicaram um livro chamado The Bell Curve, a respeito do quociente de inteligência (QI) em brancos e negros. Nestes, o QI é cerca de 15 pontos menor, o que levou os dois autores a concluírem que os negros são mesmo intelectualmente inferiores aos brancos. Mas outros cientistas ponderaram que: 1) não está provado que o QI esteja de fato correlacionado à capacidade cognitiva, 2) ninguém sabe até onde pesam as influências culturais – afinal de contas, o teste do QI foi bolado por pesquisadores brancos para se adequar à realidade vivida por eles.
A gente podia pensar que, depois do nazismo, do apartheid e da Ku-Klux-Klan, essas coisas estariam superadas. Mas há tolices que duram muito. O preconceito contra os portadores da trissomia 21 sobreviveu por cerca de cem anos. O que não tem nada a ver com cromossomos ou cor da pele. É burrice mesmo.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto" - -04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-24/08/2003: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-09/05/2004:"A História e a vida"
Leia também:
Carta da editora: "Scliar, nos bastidores"
Moacyr Scliar, 80 anos. O que fica de sua obra
Acesse a página oficial do escritor