Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Em Amsterdã um dos lugares de visita obrigatórios é a Casa de Anne Frank. Fui lá algumas vezes. De início, o que havia para ver era o anexo em que Anne viveu; depois, o lugar foi se transformando num museu, com uma completa exposição. E, ao mesmo tempo, atraía cada vez mais gente. Na última visita era até difícil caminhar por ali.
O que é uma boa coisa. Evocar a figura de Anne Frank é essencial, não só por causa das tentativas de negação do Holocausto, a mais recente das quais foi empreendida por ninguém menos que o presidente do Irã (imaginem o que esse homem faria se dispusesse de uma bomba atômica). E agora há uma boa oportunidade para isso, com a excelente exposição que está sendo mostrada na Usina do Gasômetro, bem mais próxima do que Amsterdã. É uma impressionante incursão no passado nazista através de fotos, de cartas, de documentos e de uma reconstituição do anexo.
Quando Hitler ascendeu ao poder, Otto Frank e a mulher fugiram da Alemanha com as filhas e foram para Amsterdã. Não adiantou: a Holanda foi ocupada pelos nazistas e, em 1942, começaram as deportações dos judeus para campos de concentração. Com outras quatro pessoas, a família Frank escondeu-se no anexo que ficava atrás do prédio em que Otto Frank tinha escritório e ali viveu confinada por dois anos. Durante o dia, eles não podiam sequer falar, para não serem descobertos. Era pior que uma prisão, e não os salvou: denunciados, foram encontrados pelos nazistas e levados para os campos de extermínio, onde Anne, a mãe e a irmã Margot morreram.
Durante o tempo em que viveu no anexo, Anne escreveu um diário, que depois da guerra foi publicado. É uma leitura tão reveladora quanto comovente. Anne fala, claro, da perseguição aos judeus, mas mostra que, mesmo naquelas duras circunstâncias, as pessoas continuam tendo emoções, continuam amando e odiando. Há uma passagem particularmente pungente. Ela conta que, aos sábados, a secretária de Otto Frank, Miep Gies, trazia-lhes livros, que eram ansiosamente aguardados por Anne: “As pessoas que levam uma vida normal não sabem o que os livros podem significar”. Miep Gies, aliás, foi um anjo da guarda para a família Frank, providenciando alimento e ajudando no que podia. Depois da guerra, declarou: “Não sou uma heroína, sou apenas uma pessoa comum. Simplesmente me dispus a fazer o que me foi pedido”.
Uma frase que é um verdadeiro preceito ético. Temos de nos dispor a fazer aquilo que a vida nos pede; aí estaremos cumprindo nossa missão como seres humanos. A vida pedia a Anne que, naquela dura situação, lesse livros e escrevesse o diário. E ela o fez. Deixou-nos um documento dilacerante. O líder sul-africano Nelson Mandela, que leu o diário de Anne Frank enquanto estava na prisão, disse que o texto o estimulou a lutar contra o apartheid. Regimes totalitários, afirmou, não são tão fortes quanto parecem; mesmo pessoas frágeis como Anne Frank podem desafiá-los. Este desafio, resumido na frase famosa de Anne Frank: “A despeito de tudo, ainda acredito que no fundo as pessoas são boas”, fica para nós como uma inolvidável lição de vida.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto" - 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"