Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Vamos supor que uma grande cidade brasileira esteja ameaçada pela epidemia de uma doença extremamente contagiosa, uma doença grave que, quando não mata, deixa as pessoas terrivelmente deformadas. Vamos supor também que de há muito exista uma vacina de eficácia comprovada contra a doença. Seria lógico supor que a população corresse em busca dessa vacina, certo?
Errado. Ao menos no caso do Rio de Janeiro em 1904, esta suposição revelou-se completamente equivocada, perigosamente equivocada. Os cariocas estavam ameaçados pela varíola, havia vacina, mas as pessoas não queriam se vacinar, estavam dispostas a morrer para não se vacinar e demonstraram-no enfrentando as tropas do governo nas ruas, numa quase guerra civil que ficou conhecida como a Revolta da Vacina. Por que?
A Revolta da Vacina teve um pivô, um alvo preferencial: Oswaldo Cruz que, à época, ocupava o cargo equivalente ao do Ministro da Saúde de hoje. Oswaldo Cruz era um cientista brilhante. Desde os tempos de estudante de medicina dedicara-se à microbiologia, área que conhecia como poucos. Era também um dinâmico administrador, responsável por campanhas bem-sucedidas contra várias outras doenças: a febre amarela, a peste bubônica. Por que razão um homem assim transformou-se no inimigo público n° 1?
Por várias razões. Em primeiro lugar, e embora a vacina já fosse antiga, ainda havia muitas lendas a respeito. Dizia-se, por exemplo, que como o líquido vacinal era extraído das lesões de vacas portadoras da varíola do gado (“vaccinia”), as pessoas vacinadas ficavam com cara de bezerro. O imunizante era gratuito, mas o atestado de vacina, obrigatório para obtenção de emprego, tinha de ser pago. Os vacinadores não eram muito hábeis; ao aplicar o imunizante em mulheres, consciente ou inconscientemente feriam o pudor dela (não esqueçam que isto ocorreu há um século, quando os costumes, mesmo no Rio, eram diferentes). Mais: havia uma feroz oposição ao governo Rodrigues Alves, do qual Oswaldo Cruz fazia parte, e que unia desde monarquistas até sindicalistas e anarquistas.
E finalmente havia o próprio Oswaldo Cruz, desde criança muito identificado com o pai, autoritário médico que trabalhou como inspetor de saúde pública. Autoritarismo, naquela época, era a regra, mesmo no Brasil, e Oswaldo não se constituiu em exceção. Seu raciocínio era simples: existe a ameaça da doença, existe a vacina, e as pessoas vão se vacinar, queiram ou não. Motivação era uma palavra que não entrava nesse raciocínio, mesmo porque seria difícil motivar pessoas numa época em que não existia rádio nem TV e que a imprensa era quase toda contra as campanhas sanitárias. O jeito seria trabalhar diretamente com a comunidade, através de paróquias, de sindicatos, de associações de bairro, dos terreiros de candomblé. Oswaldo, aparentemente, nem cogitou isso, ainda que a Diretoria de Saúde Pública tenha elaborado um folheto para ser distribuído à população: longo folheto, escrito em linguagem complicada e inútil para os analfabetos, que eram a maioria da população.
O resultado foi o que se viu, e a lição ficou. Não dá para vacinar pessoas como se vacina o gado. E não basta conhecer as doenças. É preciso conhecer os seres humanos, e levar em conta suas aspirações e também os seus temores.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto" - 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"