Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
A grande consagração de um escritor ocorre quando seu nome se transforma em adjetivo. Todo mundo, mesmo quem não leu Kafka, sabe o que quer dizer kafkiano. Há um adjetivo menos conhecido, mas também clássico: orwelliano. Alude à obra de George Orwell, pseudônimo de Eric Blair, cujo centenário de nascimento ocorreu neste 25 de junho.
A vida de Orwell é daquelas que daria um romance (de fato, boa parte de sua obra é autobiográfica). Nascido na Índia, filho de um funcionário da administração colonial britânica, Orwell conheceu desde o berço o poder imperial, com o qual tinha, como mais tarde se veria, uma relação ambivalente. Educado em Eton, interrompeu os estudos depois de um patético incidente: fez uma espécie de maldição vudu (aquela de enfiar alfinetes em um boneco) contra um colega rival para que este quebrasse a perna. Tétrica coincidência: o rapaz realmente teve uma fratura – causada por câncer, do qual veio morrer. Cheio de culpa, Orwell foi para Burma, também colônia inglesa, onde tornou-se policial. Dessa experiência resultou um ensaio notável, Matando um Elefante, em que descreve como, diante da população de uma aldeia, teve de matar um desses animais. Deixando Burma, passou vários anos de pobreza na Europa, um período que evoca em Down and Out in Paris and London (1933). Começa então a publicar ficção.
Nos anos 30, passa por uma experiência importante: alista-se, como voluntário, nas tropas republicanas que lutavam contra Franco na Guerra Civil espanhola, onde inclusive foi ferido. É aí que ocorre sua ruptura com o comunismo: os stalinistas tentavam então eliminar seus aliados num daqueles “acertos de contas” que não eram raros na esquerda, e contra os quais Orwell revoltou-se, pagando o preço: teve de fugir para salvar a vida. Desse sombrio período dá testemunho no importante Homage to Catalonia (1938): “Na Espanha eu vi, de fato, a História sendo escrita não como realmente aconteceu, mas como deveria ter acontecido, de acordo com a linha do Partido.”
A partir daí, sua vocação antitotalitária se afirmaria, e também seu isolamento. Estigmatizado pela esquerda, ficou tão paranóico que chegou a comprar (de Ernst Hemingway) um revólver, para se defender de possíveis atentados. Ele e a esposa Eileen foram morar numa remota ilha escocesa, onde criava gatos e cachorros. Apesar do choque causado pela morte de Eileen, terminou, nessa época, A Revolução dos Bichos (Animal Farm), que, publicado no início da guerra fria entre o Ocidente e os países comunistas, revelou-se enorme sucesso.
No conflito entre os blocos, Orwell desempenhou um papel ambíguo: colaborou com o serviço secreto inglês, a quem entregou, em 1948, uma lista de 35 “cripto-comunistas”. É verdade que nenhum deles chegou a ser prejudicado, mas Orwell ficou, de qualquer maneira, rotulado como delator. Àquela altura, já estava muito doente, da tuberculose que afinal viria a matá-lo. Mesmo assim embarcou no grande projeto de sua vida, a novela 1984.
Embora Orwell não seja exatamente um grande ficcionista – estava mais preocupado em transmitir mensagens – pode-se dizer que tanto A Revolução dos Bichos quanto 1984 marcaram o nosso tempo. As duas obras falam de totalitarismo, a primeira sob forma de uma satírica fábula (quase se pode ouvir a voz de La Fontaine nos bastidores), a segunda como uma distopia, a utopia vista como pesadelo: a síntese do stalinismo, que acabou por destruir os ideais da Revolução Russa de 1917 e por comprometer, até hoje, o conceito de esquerda.
Expressões como Big Brother – sim, telespectadores, é daí que vem o título do programa famoso – e frases como “Todos são iguais, mas alguns são mais iguais” passaram à linguagem cotidiana. Cinqüenta e três anos depois da morte de Goerge Orwell, a vendagem de seus livros ultrapassa 40 milhões de exemplares, em 60 idiomas, e ele continua em alta: a cada ano, 1milhão de novos leitores descobre sua obra. Num mundo em que o autoritarismo sob variadas formas continua ainda presente, a mensagem de Orwell permanece atual.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto" - 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor" -08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins" -01/07/2006: "Uma reabilitação histórica" -08/02/2004: "Dilemas caninos" -01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem" -08/03/2003: "A mulher e sua saúde" -03/04/2007: "A nossa frágil condição humana" -22/02/2004: "Liberou geral"