Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
No Rio de Janeiro, hospedo-me num pequeno hotel na Praia do Flamengo. É um local relativamente tranqüilo e, além disso, fica ao lado mesmo de um belo e antigo parque, um daqueles raros locais em que esculturas europeias combinam bem com a vegetação tropical; é um prazer caminhar por ali. O parque é, além disso, um sítio histórico. Pertence ao Palácio do Catete, hoje transformado em museu, que visito sempre que posso. Ali ocorreu, no dia 24 de agosto, o suicídio do então presidente Getúlio Vargas. Um drama do qual falaremos muito no próximo ano, que marcará o cinquentenário dessa tragédia brasileira.
Nascido em 1883, em São Borja, Getúlio Vargas foi ascendendo na carreira política – deputado estadual em 1909, deputado federal em 1922 – e chegou ao poder pela Revolução de 1930, que tirou do governo as tradicionais oligarquias e introduziu novas lideranças, inclusive as gaúchas, até então marginalizadas dos centros nacionais de decisão. A cena famosa – os cavalarianos de Vargas amarrando os cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco – representava uma desforra simbólica contra esta sensação de marginalização.
Uma vez governante, contudo, Getúlio implementou um projeto de modernização conservadora: era uma ditadura, mas uma ditadura que procurava a autonomia do país em áreas estratégicas, como o petróleo e a siderurgia. Ao mesmo tempo, uma série de leis sociais ajudavam a cooptar lideranças sindicais e a acalmar os movimentos reivindicatórios da classe trabalhadora em formação. Foi criada a previdência social, apesar da desconfiança das elites, às quais Getúlio poderia repetir a reposta de Bismarck aos junkers prussianos que o censuravam por criar um sistema de seguridade: “Estou salvando os senhores dos senhores mesmos”.
Alijado do poder em 1945, no surto de democratização que percorreu o mundo após a II Guerra, Getúlio voltou à presidência em 1951 pelo voto popular, numa dessas reviravoltas tão comuns na política brasileira. Mas agora enfrentava uma feroz oposição.. Seu governo foi abalado por denúncias de corrupção (o “mar de lama”), e ele acabou por disparar um tiro no peito.
Na famosa carta-testamento podemos distinguir dois componentes: as denúncias políticas contra seus perseguidores “Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram se e novamente se desencadeiam sobre mim...” e uma desamparada, fatalista mensagem que antecipa o fim: “Sigo o destino que me é imposto(...). Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida (...). Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”
O cenário do suicídio foi o quarto do presidente, conservado como era. O aposento impressiona pela simplicidade monástica: uma estreita cama, um roupeiro, uma mesa de cabeceira, uns poucos objetos decorativos. O que contrasta com o luxo em que vivem os governantes latino-americanos. Não lembro qual deles, ao vir ao Brasil, exigiu uma descomunal suíte de hotel equipada com um piano de cauda que teria de ser branco.
Getúlio era um homem simples. E era um melancólico, como o comprovam suas memórias e sua própria morte. Que caudilho, mesmo ameaçado por inimigos, se suicidaria? Caudilho não se suicida. Caudilho dá no pé e vai gozar os capitais acumulados. Getúlio preferiu o holocausto.
É verdade que isto representa um derradeiro desafio do visceral político que ele era. Querem minha morte? Aqui está ela. Para pessoas comuns, a História, mesmo com H maiúsculo, é uma abstração. Que visão da História teria Getúlio, quando pressionou o gatilho? Que visão da existência? Isto não sabemos e nunca descobriremos. A História não é só composta de fatos, ela é formada de enigmas.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto" - -04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
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