Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Tempos atrás encontrei uma senhora que me fez uma pergunta casual, mas perturbadora:
– Onde é que anda tua mãe, que não vejo mais?
Perturbadora, no caso, porque, tendo minha mãe morrido há muitos anos, eu, para dizer a verdade, não sei onde ela anda. Claro, existe o túmulo, e ali devem estar aquilo que a gente chama de restos mortais. Mas ninguém pensa na mãe, mesmo falecida, como restos mortais. Se evocamos nossa mãe não é um melancólico esqueleto que nos vêm à mente, é a figura de uma mulher quase sempre sorridente, uma mulher terna, afetiva – viva. Mãe, para os órfãos, está sempre viva. É uma metáfora, naturalmente, uma figura de linguagem, mas que serve de consolo. E órfãos, de qualquer idade, precisam de consolo. É impressionante como as pessoas, mesmo idosas, continuam pensando em suas mães como presença constante. De alguma maneira teimamos em ser filhos, teimamos em ser crianças, apesar dos anos e das rugas. E, de alguma forma, a mãe não nos deixa. Mães nunca deixam os filhos. Meu Pai, por que me abandonaste?, brada Cristo na cruz. É mais que uma pergunta. É uma queixa. É um protesto. É uma denúncia, até: seu Pai, o Todo-Poderoso, abandonou-o. Mas a mãe de Jesus não o abandona. Ela está ali, testemunha silenciosa do martírio.
Mas mães são seres humanos. Mães morrem. E para onde vão as mães que morrem, a não ser para o Céu, com C maiúsculo? Se o Céu existe, só pode ser por causa das mães. Claro, existem as chamadas mães desnaturadas, aquelas que não cuidam dos filhos, que maltratam os filhos. Mas a mãe que maltrata o filho está, inevitavelmente, maltratando a si própria, está sendo vítima de seu próprio problema emocional. Mesmo uma mãe assim acaba merecendo o Céu, ainda que depois de um estágio corretivo no purgatório.
Fico imaginando minha mãe no Céu. Fico imaginando, no Céu, as mães judias que conheci no bairro do Bom Fim, a maioria das quais já não se encontra entre nós: trata-se de uma espécie em extinção. E o que faz, no Céu, uma mãe judia? Em primeiro lugar, ela briga com Deus, da mesma forma que brigava com o marido, com o vizinho, com o homem da quitanda. “Deus, olha o jeito que está o mundo! Faz alguma coisa para melhorar a situação dessa pobre gente! Te mexe! Tu não és o Todo Poderoso?” Além de reclamar, a mãe judia vai à luta.
A mãe judia acorda cedo, amarra um pano na cabeça, varre o Céu, arruma o Céu, e, sobretudo, faz comida no Céu – para a mãe judia o Céu é, antes de mais nada, uma enorme cozinha, do tipo daquelas que existiam nas velhas casas da Fernandes Vieira, na Henrique Dias, na Felipe Camarão. Céu, para a mãe judia, é preparar quantidades enormes de comida, sobretudo aquela sopa que contém, em si própria, o segredo da eternidade. Com um prato de sopa, a mãe judia corre atrás dos anjos que, desesperados, se escondem atrás de nuvens. Ela não quer saber: anjo ou não, tem de comer a sopa. Depois, pode ficar tocando harpa à vontade e entoando cânticos ao Senhor. Mas primeiro a sopa. Fantasia, isto tudo? Claro que é. Mas a fantasia é o único consolo dos órfãos.