Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Recebi, via internet (esta verdadeira caixa de ressonância da nossa cultura), um curioso texto intitulado “Como enlouquecer um médico em 12 lições”. Contém coisas do tipo: “Comece a consulta reclamando da demora, mesmo que tenha sido atendido rapidamente. Depois, diga ao médico que ele é o 13º que você procura e que você só quer mais uma opinião, pois não confia muito em médico. Diga também aquela frase clássica: ‘Cada médico fala uma coisa’”. E: “Nunca responda diretamente às perguntas. Caso ele pergunte se você teve febre, diga que teve tosse. Conte tudo detalhadamente, começando, se possível, desde quando você ainda era criança”. Ou ainda: “Leve sempre três crianças com você (nem precisam ser seus filhos), especialmente aquelas que mexem em tudo, sobem nos móveis, ficam fazendo perguntas no meio da consulta. Combine previamente com uma delas para quebrar o termômetro do médico”.
Querem mais? “Quando o médico estiver se despedindo de você, na sala de espera, diga bem alto, para outros ouvirem também: ‘Vamos ver se agora o senhor acerta!’” E, ao voltar: “Inicie com: ‘Estou pior do que antes’. Aproveite para incluir, no relato, novas queixas. Diga que você passou por um farmacêutico, muito antigo e muito conceituado no bairro onde sua tia mora, e ele resolveu trocar os remédios”. Uma alternativa para o consultório: “Descubra onde seu médico dá plantão à noite, e só passe a procurá-lo lá. Dê preferência a hospitais públicos, onde ele não ganha por ficha de paciente”. O coroamento: “Diga que não concorda nem com o diagnóstico nem com os medicamentos que ele está indicando. E que você tem a sorte de ter um farmacêutico amigo”.
O texto, como muitos outros que circulam na rede, é anônimo. Mas certamente foi escrito por um médico ou por alguém que está muito familiarizado com a prática médica, porque se refere a situações reais, a problemas que provavelmente incomodam muitos profissionais. Mas a maneira como isto é feito preocupa. Porque sugere uma situação de latente hostilidade entre médicos e pacientes. E isto, numa situação em que todos os esforços devem convergir para um objetivo comum, é, para dizer o mínimo, preocupante.
O médico sabe como deve atender o paciente. Pelo menos é treinado para isso nas escolas de medicina. Pergunta: deveria ser o paciente também “treinado” para consultar o médico? Indagação mais que pertinente: com as pessoas cada vez mais informadas (inclusive pela internet), não são poucos aqueles que vão ao consultório já com dúvidas e perguntas, às vezes escritas num pedaço de papel (era o famoso “malade au petit morceau de papier” dos clínicos franceses). Mas, a julgar pelo texto, providências, quando tomadas, mais atrapalham que ajudam. Que fazer, então?
Nenhum paciente precisa receber um curso sobre como consultar o médico. Mas seria muito útil se o paciente soubesse aquilo que o médico espera dele para ajudar no diagnóstico e no tratamento. Quem pode transmitir estas informações ao paciente? Só o próprio médico. Não se trata de estabelecer regras, não se trata de 12 lições; trata-se apenas de informar, com franqueza, precisão e sobretudo afeto, aquilo que ajuda e aquilo que atrapalha. E aí certamente textos anônimos sobre o assunto não precisarão estar circulando por aí.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
Leia também:
Carta da editora: "Scliar, nos bastidores"
Moacyr Scliar, 80 anos. O que fica de sua obra
Acesse a página oficial do escritor