Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Numa época de sua vida, meu primo Carlos Scliar, grande artista plástico, trabalhou no Rio como editor de arte da extraordinária revista Senhor, fundada por Nahum Sirotsky. Cada vez que vinha a Porto Alegre, eu o visitava e numa dessas ocasiões ele disse que tinha uma surpresa para mim. Abriu um exemplar da publicação e leu-me um conto.
Foi mais que uma surpresa. Eu era um adolescente então, mas até hoje lembro o impacto que me causou aquele texto. Como é que alguém pode escrever tão bem, eu me perguntava, assombrado, sobretudo porque naquela época eu tentava tornar-me contista e já experimentava as dificuldades dessa tarefa.
O conto era Uma galinha, a escritora, Clarice Lispector, que agora está sendo evocada numa bela exposição do Instituto Moreira Salles, no Shopping Bourbon Country (não percam). Mais tarde vim a conhecê-la pessoalmente e, numa ocasião em que veio a Porto Alegre, servi-lhe de cicerone e levei-a à tevê para ser entrevistada pela Celia Ribeiro. Foi, entre parênteses, uma entrevista muito difícil. Clarice simplesmente não respondia às perguntas, o que, diante da câmera, era um problemão. Mas a escritora era assim mesmo, reservada, enigmática.
Clarice, como mostram as fotos da exposição, era uma mulher belíssima. Um tipo especial de beleza que às vezes caracterizava as judias russas (Sara Scliar, por exemplo). E era uma pessoa atormentada por vários tipos de conflito pessoal, conflitos estes que, graças a seu talento, ela transformava em grande literatura. Na exposição, a gente também pode ver como ela trabalhava seus originais, alguns deles escritos à mão, em letra torturada.
Mas, por incrível que pareça, seu talento não foi de imediato reconhecido. Ela não preenchia os critérios literários estabelecidos pela intelectualidade que era, nos anos cinquenta e sessenta, sobretudo de esquerda. Não se tratava de uma escritora engajada em causas sociais; pelo contrário, fazia uma literatura intimista, à qual se aplicava com facilidade o adjetivo “alienada”. Aos poucos, contudo, esse preconceito foi sendo vencido e seu público se ampliou, ainda que nunca ao nível do best-seller. Os contos eram magistrais, e seu último romance, A hora da estrela, é hoje um clássico. O talento de Clarice é reconhecido internacionalmente, e a exposição constitui-se assim numa oportuna homenagem.
Mulher sofrida, enfrentando problemas de saúde, Clarice morreu cedo. Mas sua ficção aí está, a nos dar constantes lições de vida, a nos emocionar. Eu a releio sempre, e sempre com o deslumbramento do jovem que se perguntava, perplexo e encantado: como é que alguém pode escrever tão bem?
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''