Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
No começo do século 19, durante o governo de Napoleão, Louis Antoine de Bourbon, duque de Enghien e membro da casa real francesa, foi preso, acusado de conspiração. De imediato, ficaram evidentes erros grosseiros da investigação: o duque simplesmente tinha sido confundido com outra pessoa. O que fizeram as autoridades? Anularam o processo? Não. Mudaram a acusação: agora o nobre era considerado culpado de contrabando de armas e colaboração com países inimigos, com o que foi rapidamente, e escandalosamente, executado. Na ocasião, Joseph Fouché, ministro da Polícia, político tão astuto quanto cínico, disse uma frase (às vezes atribuída ao também político, e também astuto e cínico, Charles-Maurice de Talleyrand) que ficou famosa: “C’est pire qu’un crime, c’est une faute”, “É pior que um crime, é um erro”.
A afirmação vem à mente diante do recente episódio em que forças israelenses mataram ativistas que tentavam chegar a Gaza numa flotilha de navios. O governo de Israel tinha avisado que impediria a expedição de chegar a seu destino; uma decisão que pode ser controversa, mas que certamente não antecipava o surrealista acontecimento que viria a seguir. A operação militar incluía a descida de soldados de helicópteros. Uma cena que, em filmes, costuma ser espetacular, e que lembra anjos vingadores descendo do céu. Na televisão, isso apareceria de forma impressionante e certamente se constituiria em uma mensagem de simbólico impacto. Mas, como sabemos, o resultado foi outro, e desastroso. Os ativistas (que não eram militantes armados, como os quatro mortos desta segunda) resistiram com os meios que estavam a seu alcance. Resultado: nove mortos e uma repercussão catastrófica na mídia. Isso lembra um outro episódio que, nesta época de Copa, vale a pena evocar, porque, segundo se conta, aconteceu justamente na Copa do Mundo em 1958, na Suécia. O Brasil iria enfrentar a União Soviética e o técnico Vicente Feola explicou a Garrincha como chegar à área do adversário e nela entrar sem dificuldade. Garrincha fez uma pergunta que ficou histórica: “Mas, seu Feola, avisaram os russos?”.
Não, ninguém tinha avisado os soviéticos para darem passagem a Garrincha, assim como ninguém tinha avisado os ativistas da possibilidade de um desfecho tão sangrento. O que aconteceu, portanto, certamente não estava nos planos. Não foi um ato terrorista. Neste, o objetivo é matar gente e, quanto mais vítimas (civis ou militares, não importa), melhor, porque a eficácia do terrorismo baseia-se no número de mortos que um atentado pode provocar. Não foi o caso, mas isso, para quem morreu, para os amigos, para os familiares, para os conterrâneos, para o público em geral, não faz a menor diferença: óbito é óbito, independentemente das intenções de quem o causa. E Israel, por sua vez, está numa posição tão difícil, que a simples possibilidade de um erro desses acontecer deveria ser suficiente para motivar uma mudança de planos.
De qualquer modo, fica clara essa comédia de erros, para usar a expressão shakespeariana, em que se constitui o Oriente Médio. Está na hora de parar com operações midiáticas e partir para a racionalidade pura e simples, e a primeira medida prática para isso é a criação de um Estado palestino capaz de conviver com Israel e de respeitar sua segurança. O resto é erro. E erros, como disse Fouché, podem ser piores que crimes.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
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