Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Entre as muitas frases que os pais dirigem aos filhos, existe uma que é particularmente perigosa. É aquela que começa com o “Quando eu tinha a tua idade”. A continuação frequentemente representa uma velada ou aberta censura. Quando eu tinha a tua idade acordava antes das seis. Quando eu tinha tua idade ajudava minha mãe a arrumar a casa. Quando eu tinha tua idade já estava fazendo vestibular. Quando eu tinha tua idade já estava empregado, ganhando bom dinheiro e auxiliando no sustento da família.
Ou seja: o filho ou a filha inevitavelmente perdem na comparação, ao menos do ponto de vista do adulto. Isto gera ressentimento, sobretudo porque às vezes corresponde à verdade. Tomem o mercado de trabalho; já foi bem mais fácil, menos competitivo. Quando me formei na UFRGS os médicos eram caçados no Estado. Havia dezenas, centenas de lugares de trabalho. Hoje, até a luta para conseguir uma vaga na residência é feroz. Disso os pais frequentemente esquecem. Esquecem que, quando tinham a idade de seus filhos, o mundo era diferente.
E era melhor? Aí está uma boa pergunta. Porque a tendência dos adultos é recordar as coisas boas e esquecer as más. E confirmam seus argumentos mostrando as manchetes dos jornais ou as notícias da tevê. Um mundo violento, cheio de ameaças, um mundo que parece sempre à beira do caos.
Será? Tomem o caso da violência. As cidades brasileiras (e outras cidades) são violentas. Mas foram as cidades que inventaram a violência? Quando a vida era principalmente rural, não havia violência? Claro que havia. Capangas degolavam inimigos a torto e a direito e isso sequer era mencionado. Poucos conflitos bélicos foram tão devastadores quanto a I Guerra Mundial.
E as doenças? A ameaça da Aids é sempre lembrada, mas no início da Idade Moderna uma epidemia de peste matou um terço da população europeia, sem falar na sífilis, que se disseminou como fogo numa pradaria seca. Ainda no começo deste século a expectativa de vida na Europa era de cerca de 40 anos. Hoje chega quase aos 80. As crianças morriam como moscas, de diarreia, de pneumonia, de fome. Como disse o filósofo inglês do século 17, Thomas Hobbes, “life is solitary, poor, nasty, brutish and short”, a vida é solitária, carente, repulsiva, brutal e curta. Sobretudo curta.
Temos vacinas, temos antibióticos, temos computadores, temos eletrodomésticos – temos mil maneiras de tornar a vida mais cômoda e mais produtiva. Precisamos reconhecer que estas coisas todas mudaram a cabeça de nossos filhos, na maior parte das vezes para melhor. Portanto, o tom mais adequado para a frase “Quando eu tinha a tua idade” não é o de sermão moralizante, e sim o de afetuosa nostalgia. Nostalgia, sim: “Ai que saudades que eu tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais” De fato, os anos não trazem a infância de volta. Mas trazem os filhos, e através deles a preciosa oportunidade de recuperar um pouco do tempo que se foi. Lembrem disso, na véspera do Dia da Criança.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
-08/06/2010: "Crimes e erros"
-13/06/2004: "O maratonista cego"
-09/11/2010:" Escritores e preconceito"
-03/06/1995:" No limiar da existência"
-14/04/2009: "Valsa triste"