Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Eu ia a pé para a Faculdade de Medicina. Descia a Rua João Telles, atravessava a Redenção, passando pelo cercado dos búfalos (sim, já houve búfalos na Redenção. Onde estarão? No céu dos búfalos, provavelmente) e entrava no prédio. A entrada principal era imponente: escadaria de mármore, balaustrada de ferro trabalhado e o busto do fundador, Sarmento Leite, a nos mirar severamente. A entrada dos fundos era banal, uma simples escadinha que levava quase que diretamente ao bar do centro acadêmico. Mas o importante era a grande porta da Rua Sarmento Leite. Entrando por ela, já éramos meio médicos. O Meneghini, que sabia tudo sobre esse prédio, contou-me que foi projetado originalmente para ser um teatro. Deve ser verdade: algo de teatral permanecia ali, naquelas salas de pé direito muito alto, nos corredores com suas grandes janelas e, sobretudo, no Salão Nobre - onde, a propósito, fiz o vestibular. Tudo ali parecia nos assegurar que estávamos ingressando numa carreira muito séria.
Mas nós éramos jovens, pouco mais do que adolescentes, e a seriedade não resistia muito à nossa irreverência. E ao nosso inconformismo: no centro acadêmico, vivíamos em assembleias e reuniões, naqueles anos agitados que precediam o golpe de 64. Nós queríamos mudar. Queríamos mudar a faculdade, a profissão médica, o país, o mundo. Sucediam-se os discursos exaltados e os artigos idem, publicados em O Bisturi, que era o jornalzinho do Centro Acadêmico Sarmento Leite. Ali apareceram vários dos meus primeiros contos. No ano da formatura, reuni-os num pequeno livro com o inepto título de Histórias de Médico em Formação. Eram histórias indignadas, generosas, mas irremediavelmente ruins. A obra jamais foi reeditada.
Só parte de nossa vida de estudantes girava em torno da faculdade. Na verdade, o nosso sonho era - literalmente - subir. Subir a ladeira, isto é, rumo à Avenida Independência. Era na Santa Casa, no hospital, que nos realizaríamos profissionalmente. Ali estavam as enfermarias (a 29, do professor Rubens Maciel, era famosa), os ambulatórios, as salas de cirurgia, os laboratórios - os pacientes. A casa de Sarmento era o trampolim que nos projetaria para aquelas alturas. Necessário trampolim, interessante trampolim às vezes, aborrecido trampolim outras vezes, mas trampolim de qualquer forma, dispositivo necessário para o grande salto, mas dispositivo a ser abandonado após o salto. Depois dos primeiros dois anos de curso, frequentávamos cada vez menos a faculdade. Certo, havia um grupo que nunca abandonava a biblioteca, augusto reduto do saber médico; e havia outro grupo que retornava sempre ao centro acadêmico, pelas razões já mencionadas. Mas, de maneira geral, já estávamos longe da casa de Sarmento. Longe no espaço, longe no tempo.
Penso nisso e me dou conta de que gostaria de refazer essa trajetória ao contrário. Voltar à faculdade e caminhar de novo pela Redenção em direção ao bairro do Bom Fim, encontrar lá as pessoas que olhavam com admiração o jovem estudante de Medicina. E isso me lembra um incidente.
Uma tarde, descendo a Rua João Telles a caminho da faculdade, fui mordido por um cachorro. Era um cãozinho pequeno, e o ferimento não era grande coisa, de modo que não dei importância ao fato, mesmo porque já estava atrasado. Mais tarde, no centro acadêmico, contei a história - não sou um contador de histórias? - aos colegas. Um deles, que morava na Rua João Telles, arregalou os olhos: ele também tinha sido atacado pelo mesmo cão, mas depois de mim. Sua reação fora diferente: puxara o revólver e matara o animal na rua mesmo.
Aquilo me precipitou num inferno astral. Com a suspeita de que o cão estivesse raivoso, meus professores aconselharam a vacina anti-rábica. Tive reações horrorosas, precisei tomar medicamentos que me deram outras reações - enfim, um sofrimento medonho. Mas que era, de alguma maneira, uma introdução ao sofrimento alheio (e também, acho, à saúde pública). Ou seja: na rua aprendi algo importante. E é por isso que precisamos refazer constantemente nossa trajetória e passar de novo pelas ruas que nos contam histórias.
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