Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Amigo secreto, que grande ideia. Permite que a eventual modéstia do presente que se dá ou recebe fique oculta pelo piedoso véu do anonimato. O mais importante, porém é a própria, ainda que fugaz, existência de um amigo secreto, alguém que pensa em nós, que se preocupa por nós porque é a sua obrigação. Quase como nosso pai ou nossa mãe. Quase como Deus. É verdade que Deus não recebe presentes de fim de ano, mas isto é porque ele não vai a festas de amigo secreto. Há um pequeno problema com o presente que se recebe do amigo secreto. É que não dá para trocar. Se é um livro que já temos, ou uma gravata medonha, ou um cinto que dá duas vezes a volta a nossa cintura, não importa: é nosso, teremos de ficar com o presente. "Pessoal, quem me deu essa coisa horrorosa? Forneça-me a nota, por favor que quero trocar.'' É possível? Não, não é possível. Cara-de-pau tem limite, mesmo - e sobretudo - nas festas natalinas. Ficamos, sim, com o presente. Amigo é pra essas coisas. Sobretudo amigo secreto.
Existe uma alternativa, porém. É passar a coisa adiante. O que já gerou mais de uma história curiosa.
Na festa do escritório, Pedro ganhou um presente do amigo secreto. O embrulho era muito bonito, mas ele seguro de que não gostaria: tinha muito azar nessas coisas.
Não deu outra. Era um porta-retratos mas medonho, uma coisa kitsch, pintada de um vermelho ofensivo, Na hora, ele ocultou a decepção: mostrou o porta-retratos aos colegas, disse que era exatamente aquilo que estava esperando; mas saiu decepcionado.
Não se deu por achado, contudo. Naquele mesmo dia tinha uma festa de amigo secreto no clube onde jogava futebol de salão. Refez cuidadosamente o embrulho, e colocou nele um cartãozinho, destinando-o a seu amigo secreto, o Evaldo.
Evaldo não era um homem de fino gosto, mas não deixou de ficar chocado com o porta-retratos. Que coisa monstruosa, pensou. Mas, tal como Pedro, não revelou a sua contrariedade, fazendo, em público, um efusivo agradecimento. Ao sair do clube, pensou em jogar o porta-retratos fora; mas aí se lembrou que ainda tinha uma festa de amigo secreto, organizada pelos empregados da pequena firma de limpeza da qual era um dos proprietários. Seu, até certo ponto malévolo, raciocínio era de que para gente humilde qualquer porta-retratos escroto serve. Como Pedro, refez - com certa dificuldade, pois o papel prateado ameaçava rasgar - o embrulho e levou-o para a festa.
Estava cometendo um erro de cálculo. Por uma dessas ironias do destino, tão comuns em festas de fim de ano, o amigo que lhe cabia presentear era o seu próprio sócio. Quando se deu conta, era tarde demais; não dava nem tempo para correr no supermercado e comprar uma garrafa de uísque importado. De modo que Alberto, o sócio, acabou recebendo um porta-retratos. Achou um espanto, aquilo, mas agradeceu, etc.
A história poderia se prolongar indefinidamente, mas a vida humana é limitada e há um momento em que terminam as festas de amigo secreto. Alberto não tinha para quem dar o porta-retratos. Saiu da firma aborrecido, e pensando em terminar de vez a sociedade com o Evaldo: "Tenho certeza de que este canalha anda me sacaneando. Este presente é uma prova.''
Ia jogá-lo no lixo. Mas aí, enquanto abria a porta do carro, um garotinho se aproximou - bem cuidado, tio! - e Alberto instantaneamente descobriu o que fazer com o porta-retratos:
- Não tenho trocado, meu filho, mas aqui está um presente pra ti.
Entrou no carro e partiu. O garoto sentou na calçada, abriu o embrulho e - suave milagre - ficou deslumbrado com o que recebera. Um porta-retratos, que maravilha! E naquele momento mesmo decidiu: se um dia tirasse uma fotografia, ele a colocaria no porta-retratos vermelho.
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