Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
O rei bíblico Salomão ficou conhecido pelo poder, pela sabedoria e também pelo tamanho de seu harém, que abrigava 700 esposas e 300 concubinas. Apesar disto, o rei ainda encontrava tempo e oportunidade para casos extraconjugais. Um desses romances aconteceu com a deslumbrante Rainha de Sabá, que veio da Etiópia especialmente para conhecê-lo. E de fato conheceu-o, inclusive carnalmente. Voltou para a África grávida, e de seu filho, Menelik, surgiu uma estirpe de judeus negros conhecidos como falashas. Isto é o que diz a lenda. Mais possivelmente os falashas converteram-se ao judaísmo (e ao cristianismo) nos primeiros séculos da era cristã e, como judeus, permaneceram como uma comunidade isolada, com seus próprios costumes, em geral diferentes daqueles do judaísmo tradicional. Não conheciam obras religiosas importantes, como o Talmud, e também não falavam hebraico. Mas celebravam o sábado e mantinham as prescrições dietéticas da Bíblia.
Por motivos religiosos ou por outros motivos, os falashas foram oprimidos e perseguidos. Além disto, viviam nas condições de fome e miserabilidade que são comuns na África, o que ameaçava inclusive a sua sobrevivência. Três operações foram então desencadeadas para trazê-los para Israel, a primeira em 1984, a segunda (apropriadamente conhecida como “Operação Salomão”) em 1991, e a terceira em 1992. Milhares de falashas foram transportados de avião diretamente da África para território israelense.
Como se pode imaginar, a adaptação destas pessoas não foi fácil; não raro resultou em um verdadeiro choque cultural. Mas é uma história que ensina muitas lições, sobretudo pela emoção que desperta. Vários livros e artigos foram escritos sobre o tema. Agora, um belo filme ajuda a recordar a epopeia dos falashas: trata-se do multipremiado Um Herói de Nosso Tempo (Vas,Vis e Deviens) do romeno Radu Mihaileanu, em cartaz em Porto Alegre.
A história começa em 1984,quando a fome grassava na África, e os primeiros falashas começavam a ser trazidos para Israel. Num acampamento de refugiados, no Sudão, uma mãe, cristã, decide salvar seu filho de nove anos da morte certa declarando-o judeu e dando-lhe o nome de Schlomo (Salomão, em hebraico). Supostamente órfão, o menino é adotado por uma família de Tel Aviv. O filme acompanha a trajetória do garoto ao longo de vários anos da história de Israel, incluindo a primeira guerra contra o Iraque e os levantes nos territórios palestinos. Amparado por uma família afetiva e esclarecida (o pai se declara um homem de esquerda), o inteligente e vivo Schlomo consegue estudar e forma-se em medicina. Mas ao mesmo tempo ele descobre a intolerância política e religiosa na própria sociedade israelense, e até mesmo certo racismo, que o leva a ser chamado de “kushi”(negro, em hebraico) por algumas pessoas. E tem de conviver com sua secreta identidade e com a lembrança da mãe que ficou na Etiópia. Uma situação que Mihaileanu, judeu de origem romena, conhece bem (seu pai teve de mudar de nome durante a ocupação nazista) e que usou no filme O Trem da Vida, no qual judeus, para sobreviver, disfarçam-se de oficiais alemães durante a II Guerra Mundial. Schlomo vive um conflito particularmente doloroso quando se apaixona pela filha de um dogmático rabino. Quando o casamento se consuma, o homem declara a filha “morta”.
Na França, Um Herói de Nosso Tempo recebeu impressionante apoio não só de instituições judaicas, como também de sindicatos de professores, de associações de pais e mestres, de várias ONGs e do Médicos Sem Fronteiras (que Schlomo, no filme, integra). É difícil encontrar um filme com apelo tão grande à coexistência e à tolerância. O roteiro é um tanto esquemático, e a gente pode até imaginar Mihaileanu dizendo para os colaboradores: “Agora temos de incluir os palestinos...Agora temos de falar dos fanáticos religiosos...”.
Mas isto é detalhe. A simples alusão à insólita existência dos falashas já justifica a obra. Salomão saltaria da cama para aplaudir de pé. E a Rainha de Sabá, então, nem se fala.
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