Por Rafael L. Kasper
Escritor e doutor em Filosofia pela UFRGS
Em 1924, Franz Kafka morreu. Vítima da "guerra" nos pulmões, perto de completar 41 anos, deixou pais, namorada, amigos, textos publicados, não publicados, diários, desenhos, bilhetes-testamento para queimar tudo ou quase tudo. E deixou obra da qual o leitor em busca de significado último depara com um adjetivo característico: impossível.
O edifício simbólico de Kafka, como o prédio em Diante da Lei, é impenetrável. Walter Benjamin falou na "beleza da falha" em Kafka, autor cujos ecos polissêmicos, no centenário da sua morte, seguem reverberando.
O "império discursivo ilimitado" (Cynthia Ozick) foi fundado pelo amigo Max Brod, que, celebremente, desobedeceu o testamento para queimar "tudo que deixo para trás". Além de publicar a obra, Brod se deu tarefa mais difícil: interpretá-la. Em 1937, falou num "território transcendental" em Kafka.
A leitura religiosa, de um cabalista sem Cabala, cético intuindo o "Indestrutível", seria contraposta por leituras psicanalíticas de um "poeta da vergonha e da culpa" (Saul Friedländer), atormentado não pelo Indestrutível, mas por pulsões destruidoras. Kurt Tucholsky, recusando sentidos adicionais, disse que Na Colônia Penal "não significa nada".
Um Kafka contraído e descontraído
Recentemente, o império interpretativo cresceu com a biografia escrita por Reiner Stach (que está sendo publicada no Brasil pela editora Todavia, em três volumes). Stach move eventos biográficos e literários com cautela especulativa, centrado em "como aconteceu". Em Isso é Kafka? 99 Achados (inédito no Brasil), Stach desafiou o "clichê poderoso" do neurótico, mostrando um Kafka mais descontraído.
Trabalhos como o de Stach e Benjamin Balint (O Último Processo de Kafka, que saiu no país pela Arquipélago Editorial) permitem ao leitor assistir, com nuances, à "minha história mundial pessoal" (em carta à irmã Ottla). Embora seja impossível decifrar essa história, e ciente do fracasso da "kafkologia", arrisco entrar no território interpretativo, propondo a atualidade de Kafka nas seguintes linhas.
Atento e hiper-realista
Kafka é escritor político-histórico. Em 1934, Walter Benjamin já rejeitara leituras teológicas (que lançariam Kafka num além) e subjetivistas (que o buscariam no interior), propondo um Kafka-Sísifo arrastando pilha de eventos históricos.
"A Alemanha declarou guerra à Rússia — natação à tarde." A famosa nota no diário sugere um Kafka ensimesmado. Para Stach, isso é "fantasia". Político, aqui, não é alguém em lutas partidárias, apoiado em jargões ideológicos, mas atento, hiper-alerta, angustiado (com Angst) pelas dores do mundo.
Kafka viveu a Primeira Guerra ("normalidade é a Guerra Mundial"), a Febre Espanhola (a contraiu), a proliferação de estresse pós-traumático (ajudou a tratar vítimas psíquicas da guerra), o fim do Império Austro-Húngaro, hiperinflação, caos social.
Transliterou a alienação ("ar que respiro"), pois era ciente dela. Era, na fórmula de Hannah Arendt, "pária consciente", poetizando a impotência para denunciá-la. "A lei do Castelo não é divina", Arendt disse, "consequentemente, pode ser atacada".
Kafka tratou de metamorfoses que criaram instituições distorcidas, alienantes.
Fundindo realidade e lenda
Embora seus enredos não ocorram em tempo específico e suas personagens não tenham identidades situadas, Kafka tratou de metamorfoses que criaram instituições distorcidas, alienantes.
Como diferenciar, no século 20, civilização e barbárie? O macaco aculturado em Um Relatório a uma Academia aprendeu a escrever, beber álcool, frequentar sociedades científicas ("Era tão fácil imitar as pessoas!"), e perdeu sua vitalidade.
Como crer em progresso? Kafka, segundo Benjamin, tenta "atrasar o futuro". Falou-se em "telescópio" histórico. Mas, Stach lembra, o autor já via com seus próprios olhos uma violência despersonalizada, tecnológica subjugando inocentes. Não era profecia, mas "análise sóbria das estruturas subjacentes que hoje vieram à tona", disse Arendt em 1944.
Nessa "história mundial pessoal", é impossível dizer onde termina o self e onde começa o mundo objetivo. Kafka funde realidade e lenda, vida e palavra num universo simbólico onde tudo é estória. A tosse é "animal", a noiva Felice Bauer é "tribunal", a doença é "punição", "liberação" ou "passaporte".
Com palavras precisas, Kafka emprega formatos tradicionais, como a parábola, falando de tradições arruinadas. "Sou memória que virou vida; logo, minha insônia". Era memória com sensibilidade, autoexigência, "senso de verdade quase mórbido" (Ivan Klíma).
Membro de uma minoria judaica
Kafka é escritor judeu de língua alemã “aprisionado” em Praga. Cidade, língua e etnia não coincidem. Kafka não era tcheco. Era, parafraseando Balint, membro de uma minoria judaica numa minoria de língua alemã junto a uma minoria tcheca. Resultado: inadequação, o sentido de "nada" articulado na Carta ao Pai.
Em 1983, aqui em Zero Hora, Moacyr Scliar disse que Kafka era "um judeuzinho triste". Mas que tipo de "judeuzinho"? Um que não agarrou o último xale esvoaçante no templo. Ele bocejava na sinagoga. Via a Torá sair da arca e pensava em tiro ao alvo no parque de diversão.
"O que tenho em comum com os judeus? Eu quase não tenho nada em comum comigo mesmo." Mas era "velho como o judaísmo", chorou ao ler sobre libelos de sangue, aclamou o "heroísmo das baratas" que ficam onde são perseguidas.
Crítico à assimilação, disse que escritores judeus-alemães andavam com as patas traseiras no judaísmo dos pais e as patas dianteiras tateando o ar.
Kafka era membro de uma minoria judaica numa minoria de língua alemã junto a uma minoria tcheca.
Alma intocada pela modernidade
Kafka recusou se ajustar a um "ocidente" em autodestruição. Viu nos judeus do leste um primitivismo encantado, alma intocada pela modernidade. Os judeus do leste europeu eram "tribo africana selvagem" à qual ele imaginou pertencer.
Atraído pelo teatro iídiche, arrebatado por Dora Diamant, "criatura escura" com quem viveu em Berlim, falou no seu "novo judaísmo", que, evitando convenções sociais e comerciais, "enjoava" o pai.
Estudou hebraico, debatia o sionismo circulando por Praga com o livro Entre os Índios do Xingu. Era um "chinês indo para casa", tentando ir. Ele não queria bandeira, patriotismo, mas, segundo Arendt, queria "abolir" a anormalidade de párias sem direitos básicos — casa, trabalho, cidadania.
Foi à Palestina só "com o dedo no mapa"
Kafka imaginou se liberar como camponês, "verdadeiro cidadão da Terra". Outra imagem de liberação era virar garçom — meltzar, escreveu em hebraico no diário. Ele abriria um café em Tel Aviv com Dora. Ela cozinharia, ele se transformaria em ninguém, no melhor sentido, pessoa comum servindo mesas, "observando sem ser observado" (Balint).
Não virou garçom. Foi à Palestina só "com o dedo no mapa". Prevaleceu o Abraão-garçom, sem conseguir sair de uma casa que precisa pôr em ordem.
Em 1923, foi a Berlim, cidade prometida onde passou o último inverno, viu a pobreza causada pela hiperinflação e, após leve melhora, desabou com febre. Ele morreria meses depois, em sanatório no subúrbio de Viena.
Kafka tem ainda muito a falar, a alertar.
Fim ou começo?
O mundo de Kafka ainda existe. Cronologicamente, ele começa no século 19 e chega ao 21, com pico dramático no século 20, na guerra que abalou suas condições, depois no nazismo, que dizimou irmãs, amigos, e forçou Brod, com os papéis não queimados na mala, a entrar no último trem de Praga antes do fechamento das fronteiras, com destino a Tel Aviv.
Esse mundo de sujeitos vitimados como Josef K., sem saber por que, sem ter feito nada de errado, continua produzindo distorções: ressurgência do nacionalismo, derrocada do sionismo, catástrofe do Oriente Médio, crise da natureza (nem o camponês está mais em casa).
Kafka tem ainda muito a falar, a alertar, seja lido por Steiner após Auschwitz, por dissidentes no leste europeu nos anos 1980, pela estudante palestina de Balint em 2024, por oprimidos sob injustiças disfarçadas como o ar que se respira.
O ar que respiramos agora — cheiro de guerra, mísseis, disparados sob a desculpa do inevitável, atingindo vítimas anônimas, ar com mais dióxido de carbono, alérgenos — não é um ar natural ao qual devíamos nos aclimatar.
"Eu sou um fim ou sou um começo", Kafka escreveu em 1918. Resta interpretar: fim ou começo? Se for começo, começo do quê?