Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Na minha infância no Bom Fim, conheci um garoto, cujo nome eu já não recordo, mas que era a própria imagem da tristeza, de uma tristeza misturada com ansiedade e com angústia. No fim do ano, depois de se sair mal nos exames, ele não voltou para casa: foi para o Parque Farroupilha e ali, junto ao lago, ingeriu uma violenta dose de veneno, vindo a falecer. Lembro ainda a comoção que o fato provocou entre nós, crianças. Morte era uma coisa longínqua, sobretudo morte entre jovens, sobretudo morte por suicídio. Não podíamos acreditar que fosse verdade.
Mas era verdade. Uma verdade que, trabalhando em saúde pública, confirmei, com a ajuda de números frios e implacáveis. Jovens se suicidam. Suicidam-se em todo o mundo. As estatísticas nos dizem que cerca de 8% dos adolescentes tentam o suicídio. O número de óbitos por essa causa cresceu 300% nos últimos 30 anos. E notem que estamos falando apenas nos casos comprovados. Muitas mortes ditas acidentais são, na verdade, suicídios disfarçados. O jovem que, bêbado, dirige em alta velocidade pode estar em realidade buscando o auto- extermínio. Dado importante: até 80% dos jovens que se suicidam têm depressão. Ou seja, eles têm uma doença que, embora potencialmente grave, é tratável – pode e deve ser tratada. Mas o primeiro passo para isso é o diagnóstico, tanto por parte de pais, professores, responsáveis, quanto por parte dos médicos. E esse diagnóstico encontra uma dificuldade inicial: é muito difícil associar infância e juventude, épocas risonhas da vida, com depressão. Mesmo porque os jovens pacientes não sabem bem o que é isso e tendem a culpar as circunstâncias: a relação com os pais, os problemas na escola ou com amigos. No caso do menino do Bom Fim todo mundo lá no bairro dizia: “Isso aconteceu porque ele foi mal nos exames”. Não era verdade. Muita gente vai mal nos exames e não se mata. O fracasso foi um fator desencadeante, mas não a causa. Na verdade, só nas duas últimas décadas se começou a pensar seriamente em depressão na infância e na adolescência.
Quando pensar em depressão na infância e na adolescência? Nas crianças menores, o transtorno se manifesta por queixas físicas, como cansaço, distúrbios do apetite, dificuldade de concentração, problemas escolares, irritabilidade, crises de choro, autoimagem negativa. Depois dos 12 anos, o uso de álcool e de drogas, o isolamento social, dificuldades sexuais se acrescentam ao quadro.
Diagnosticada a depressão, ela deve ser tratada. E hoje temos muitos recursos para isso. Temos a psicoterapia propriamente dita e temos o tratamento por medicamentos. Na depressão, existe um distúrbio químico do cérebro que pode ser corrigido. Psicoterapia e medicamentos não se excluem, ao contrário, completam- se. Ocorrida a melhora, é preciso continuar observando, porque depressão pode voltar.
Fico pensando que meu pequeno amigo do Bom Fim poderia ter escapado a seu destino se soubéssemos na época o que sabemos hoje. Em homenagem à memória dele, e à memória de muitos outros, temos de continuar brigando. Depressão faz parte da vida. Enfrentar a depressão é mergulhar profundamente no significado da existência.
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
-08/06/2010: "Crimes e erros"
-13/06/2004: "O maratonista cego"
-09/11/2010:" Escritores e preconceito"
-10/10/2004: "Quando eu tinha a tua idade"
-21/11/2010: "O primeiro hippie"
-02/09/1995: " Há algum médico a bordo?"
- 13/05/2008: "Israel, 60 anos"
-03/10/2004: "O mundo visto do leito"
- 24/12/1995: "O amigo secreto"
- 25/07/1998: " Histórias de médico em formação"
- 15/04/2006 : "Em busca da tolerância"
-29/08/2008: "O segundo fôlego"
- 19/05/1991 - "O vegetariano"