Fato de magnitude desconhecida até então na cidade, a Exposição do Centenário Farroupilha, em 1935, deixou um legado que viria a moldar a identidade e a cultura porto-alegrense: o Parque Farroupilha.
Porto Alegre, que completará 250 anos em 26 de março, vivia expansão na economia naquele período, com a ascensão de uma categoria de novos burgueses, os industriais, e havia planos em execução de abertura de ruas, avenidas, ajardinamento de espaços públicos e construção de prédios referenciais. Junto a isso, o desejo de políticos, como o então governador Flores da Cunha, de se lançarem no cenário nacional.
O poder da época decidiu que o coroamento daquela prosperidade seria a realização de um evento que entraria para a história, em comemoração aos cem anos da Revolução Farroupilha e em busca da valorização dos revoltosos, como Bento Gonçalves. As exposições eram tradicionais desde o século 19, com o objetivo de proporcionar negócios, apresentar a produção industrial e agrícola, promover intercâmbio, cultura e entretenimento.
O local escolhido para a realização da Exposição do Centenário Farroupilha foi um descampado alagadiço que tinha pouquíssimos equipamentos na sua vasta área e era conhecido como Campo da Redenção, uma das denominações do espaço ao longo da história. A intenção de Flores da Cunha e do prefeito Alberto Bins, comissário-geral da exposição, era aproveitar o evento para estruturar esse local a ponto de, depois, transformá-lo no grande parque público de Porto Alegre. A aposta se concretizou e a exposição foi um sucesso.
— De forma proporcional, foi o maior acontecimento que já houve em Porto Alegre. A cidade ainda era pequena em 1935 (a população era de cerca de 313 mil, segundo o Álbum do Bicentenário de Porto Alegre, publicação patrocinada pela prefeitura), e aquilo foi grandioso. Movimentou a comunidade com coisas jamais vistas, atrações como cassino, estandes com produtos do Brasil inteiro, delegação estrangeira, e se fizeram negócios. Eram muitos atrativos para a população local. Havia passeios de barco e o chafariz iluminado, com shows à noite, no meio da Redenção — diz José Francisco Alves, doutor em História da Arte e professor do Atelier Livre Xico Stockinger, da prefeitura.
A exposição legou à cidade um Parque Farroupilha ainda embrionário, mas com equipamentos que até hoje se encontram lá. Entre eles, o eixo central, o chafariz luminoso, o grande lago, a ilha e a estrutura de locação de barcos, que depois foi um café. Ali se estabeleceu uma conexão para a Porto Alegre da era moderna.
— Dois intendentes (prefeitos) prepararam essa época, o Otávio Rocha e o Alberto Bins (entre 1924 e 1937). O que tivemos com a Exposição Farroupilha foi a culminância de um processo que começou antes, desde os anos 1910. Os jornais da época diziam que havia mais pontos de luz e de energia na exposição do que em todo o resto da cidade (veja na foto abaixo). A exposição foi um marco da modernização do espaço urbano — diz Charles Monteiro, professor da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS) e pesquisador da história da Capital.
Vários usos, muito significado
Historicamente, o terreno do icônico Parque Farroupilha sempre teve uso público, mas não foram poucas as tentativas de dar outras destinações a ele, sobretudo no século 19.
Uma das mais citadas é descrita pelo historiador Sérgio da Costa Franco e ocorreu em 1826, quando a Câmara Municipal queria parcelar e distribuir a região em terrenos. Franco ensina, na obra Porto Alegre: Guia Histórico, que, em 14 de outubro de 1826, uma provisão do então imperador Dom Pedro I vetou a tentativa das autoridades locais, determinando que o local se manteria destinado à realização de exercícios militares. Houve tentativas posteriores de mudar os rumos da área, todas fracassadas.
No início daquele século, o local se chamava Várzea do Portão. Esse nome foi atribuído porque era uma planície alagadiça, sem uma árvore sequer ou construção, e ficava localizada ao pé do portão da cidade de Porto Alegre. Ou seja, do lado de fora da fortificação da Capital – narram os historiadores que era uma defesa relativamente frágil, uma paliçada.
Além do uso militar, a Várzea do Portão era ponto de parada para descanso dos carreteiros, que traziam do Interior produtos como hortifrutigranjeiros e carnes para o comércio. Em geral, o carreteiro era um indivíduo do trabalho pesado, praticado sobretudo por negros e homens de características indiáticas. Na Várzea, eles acendiam fogo de chão, praticavam algum entretenimento, como o jogo do osso, e ocorriam atos religiosos.
Em abril de 1870, a Várzea passou a se chamar Campo do Bom Fim, fruto provavelmente da construção da Capela do Senhor do Bom Fim em área próxima, na atual Avenida Osvaldo Aranha. Começava a se ampliar a vizinhança ao descampado. Dois anos depois, o terreno original do atual Parque Farroupilha perdeu sua primeira área para a construção do que hoje é o Colégio Militar. E se fazia de tudo naquele lugar: havia descarte abusivo de animais mortos, o que chegou a ser denunciado, e os vereadores autorizaram, em 1887, o depósito de lixo em valas.
De forma proporcional, foi o maior acontecimento que já houve em Porto Alegre. A cidade ainda era pequena em 1935, e aquilo foi grandioso
JOSÉ FRANCISCO ALVES
Doutor em História da Arte e professor do Atelier Livre Xico Stockinger
Um toque para a história afetiva da antiga Várzea ocorreu em 1884, com um ato de abolicionistas que decidiram libertar, no local, os seus escravos. O lugar passou a se chamar Campo da Redenção, nome eternizado até hoje no coração dos porto-alegrenses.
Em 1901, houve uma exposição estadual de grande porte para a época e, depois dela, a área original da Redenção perdeu algumas porções do seu terreno para a construção de prédios que viriam a ser da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos arrabaldes da Rua Sarmento Leite. A área do parque, já reduzida em dois pontos, ganhava contornos mais próximos dos atuais em termos de espaço, embora ainda sem equipamentos definitivos.
Uma foto histórica da década de 1910, que consta no acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, mostra que o Campo da Redenção ainda era um descampado alagadiço àquele momento (veja imagem abaixo). A área então recebia algumas construções temporárias de entretenimento para a população, como um velódromo para corridas de bicicleta e até uma arena de touradas.
O início do século 20 trouxe a busca fixa pela urbanização e o ajardinamento da cidade. Foi nesse espírito que, na gestão do prefeito Otávio Rocha, entre 1924 e 1928, uma pequena fração do Campo da Redenção foi urbanizada, recebendo o nome de Jardim Paulo da Gama, o qual permanece até os dias atuais nos moldes de sua inauguração quase centenária, próximo da Avenida João Pessoa.
— A ideia do parque Paulo Gama nasceu no plano de melhoramento e embelezamento da Capital, de 1914, um projeto de João Moreira Maciel (engenheiro-arquiteto). Era um planejamento de infraestrutura para a cidade — diz Nathalia Danezi, arquiteta e urbanista, vice-presidente da seção gaúcha do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS).
Sérgio da Costa Franco narra que, em 1928, o estacionamento das carretas foi retirado do Campo da Redenção, destinado a ser espaço da comunidade, e transferido para o Caminho do Meio. Era mais uma semente do que seria o futuro parque da cidade.
O anúncio da modernidade
O então governador Flores da Cunha, em uma época em que o Brasil já vivia profundas transformações políticas e a era do presidente Getúlio Vargas, resolveu jogar holofotes no Rio Grande do Sul com um evento memorável. Havia um movimento de resgate e culto aos farroupilhas, embora qualquer ideia separatista estivesse totalmente fora de esquadro. Era a construção de uma identidade regional.
Pesquisa de José Francisco Alves aponta o movimento ao identificar manchete do jornal A Federação, então diário oficial do Estado, de 19 de setembro de 1934, que propagandeava: “O Rio Grande de Bento Gonçalves e Flores da Cunha”. Foi decidido, então, que o centenário da Revolução Farroupilha seria comemorado em 1935 com uma grande exposição internacional em Porto Alegre.
Olhando para trás, a ideia de escolher a Capital para um evento de homenagem aos farroupilhas pode parecer incongruente. Habitada já no passado por imigrantes e seus descendentes, Porto Alegre não apoiou a revolução e o separatismo, ficou ao lado do Império brasileiro e, por isso, recebeu o título de “leal e valorosa” de Dom Pedro II. Esse lema é ostentado até hoje no brasão da cidade.
— Essas contradições estão sempre na história e na dinâmica política. São inerentes aos processos de celebração e esquecimento — avalia o professor Charles Monteiro.
Flores da Cunha e Alberto Bins encaminharam, portanto, a Exposição do Centenário Farroupilha no Campo da Redenção. Então, o espaço público teve o evento como motor de propulsão.
Foi nesse contexto que os políticos da época tiraram da gaveta o Projeto Agache, do urbanista francês Alfred Agache, que havia sido encomendado pelo município poucos anos antes. Agache estava radicado no Rio de Janeiro, à época Distrito Federal, fazendo trabalhos urbanísticos, e havia sido contratado para projetar o parque de Porto Alegre.
Porto Alegre ano 250
Porto Alegre completou 249 anos em 26 de março de 2021 ainda sob impacto da pandemia do coronavírus. Para o Grupo RBS, a data também marcou o início da contagem regressiva para os 250 anos, que serão completados em 2022. Assim, mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
Os governantes deram início aos trabalhos de drenagem e nivelamento da alagadiça região. E, seguindo relativamente o Projeto Agache, iniciaram as obras que dariam os primeiros contornos do parque que temos hoje. Nesse processo, foi construído o eixo monumental, o chafariz luminoso, o lago e sua ilha, além da estrutura que, na época, servia para o aluguel de barcos de passeio e, mais recentemente, abrigou o então Café do Lago.
Dentre os monumentos, uma estátua de Bento Gonçalves foi esculpida para a exposição de 1935 e instalada no parque – ela foi deslocada, depois, para defronte ao Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Segue no parque até os dias atuais, desde o festejo, a famosa escultura do Gaúcho Oriental, presente enviado por lideranças do Uruguai.
Naquele dia, 19 de setembro de 1935, uma multidão que eu nunca havia visto antes se acotovelava no portão principal dando a impressão de que cada um gostaria, sem atropelo, de ser o primeiro a entrar
JOSÉ CONRADO DE SOUZA
Técnico em lubrificação industrial e militar, testemunha ocular do evento
O prédio histórico em que funciona o Instituto Educacional Flores Cunha, projetado pelo arquiteto espanhol radicado em Porto Alegre Fernando Corona, também foi construído para a exposição com o intuito de que fosse uma estrutura definitiva. À época da festa, ele abrigava o pavilhão cultural e ficava do lado de fora do pórtico de entrada do evento.
Em 19 de setembro de 1935, véspera da abertura da feira, Alberto Bins publicou decreto modificando o nome de Campo da Redenção para Parque Farroupilha.
“Eu tinha quatorze anos de idade quando o Parque da Exposição Farroupilha foi inaugurado. Naquele dia, 19 de setembro de 1935, uma multidão que eu nunca havia visto antes se acotovelava no portão principal dando a impressão de que cada um gostaria, sem atropelo, de ser o primeiro a entrar”, escreveu a testemunha ocular José Conrado de Souza, técnico em lubrificação industrial e militar, em livro de crônicas publicado pela prefeitura de Porto Alegre em 1998, ainda no embalo das homenagens aos então 60 anos do local, completados em 1995.
A exposição contou com um grande número de estruturas temporárias, construídas em material mais simples apenas para o evento, basicamente em ferro e estuque, e demolidas tempos depois. Embora fossem prédios com prazo de validade, tudo era grandioso. O maior era o pavilhão da indústria do Rio Grande do Sul, indicando a aliança daquele momento de Flores da Cunha, de raiz política mais conservadora, com os industriais da nova burguesia porto-alegrense, uma elite liberal, se comparada à tradicional do setor agrícola.
Havia destaque para diversas construções, como o luxuoso cassino, os pavilhões da agricultura e pecuária, da indústria estrangeira, além de um canódromo para corridas de galgos. O país a ter representação oficial foi o Uruguai. À noite, havia encantamento com a quantidade de luzes, sobretudo na fonte luminosa. Para Nathalia Danezi, não é exagero considerar que a exposição no recém-inaugurado Parque Farroupilha foi um passo importante de Porto Alegre rumo à modernidade.
— Foi nesse contexto que a Redenção ganhou as características atuais, com o eixo central, o grande lago e o eixo transversal. A exposição queria representar isso, a modernidade, com muita iluminação, muita vida, muita construção. Houve todo um processo, mas, com certeza, colaborou para a visão mais moderna da cidade — diz Nathalia.
A exposição queria representar isso, a modernidade, com muita iluminação, muita vida, muita construção. Houve todo um processo, mas, com certeza, colaborou para a visão mais moderna da cidade
NATHALIA DANEZI
Arquiteta e urbanista, vice-presidente da seção gaúcha do IAB
Sete Estados brasileiros aderiram e montaram seus estandes em prédios temporários de considerável porte: Santa Catarina, Minas Gerais, Paraná, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro (Distrito Federal) e Pará. O princípio era apresentar aqui os produtos de sua indústria e agricultura, promover intercâmbios e negócios.
O pórtico de entrada era imponente, com duas torres altas e vigorosas que lembravam chaminés de transatlânticos. Imagens de época mostram centenas de pessoas aglomeradas próximas à portaria de acesso (veja imagem abaixo).
— Movimentou demais a cidade. Todo dia tinha algo para fazer ali — diz José Francisco Alves.
Bandeiras de outros tempos
No livro Prazer em Receber, o historiador Gunter Axt, atual secretário da Cultura de Porto Alegre, conta como a tradição das churrascarias se fortaleceu na exposição. Ele narra que a família Aita, do restaurante Santo Antônio, assou uma churrascada para centenas de pessoas na inauguração da festa, a pedido de Flores da Cunha e Alberto Bins. O sucesso levou os Aita a inserir o churrasco no cardápio do negócio da família, conta Axt.
O eixo central, mostram as imagens de época, continha um gramado ajardinado no miolo (veja a imagem abaixo). Anos depois, uma piscina retangular foi instalada no local, com dimensões oficiais. Um acidente fatal com uma criança em 1967 levou a piscina a ser adaptada para uma estrutura rasa, formando o espelho d’água que temos hoje.
Nos dias da exposição, o eixo central foi denominado Avenida das Nações. Ele tinha ao fundo o chafariz luminoso e o prédio da indústria gaúcha. Nas laterais, ficavam os pavilhões dos Estados e um longo corredor adornado por bandeiras de diversos países – daí o nome.
Já causou estranhamento e discussão a presença da bandeira nazista nesse corredor. Dependendo do ângulo do fotógrafo, era possível enquadrar a flâmula com a suástica em frente ao pavilhão de Santa Catarina. Contudo, não se tratava de nenhuma homenagem especial. Explicar o que aconteceu naquela ocasião tem sido uma causa do historiador René Gertz, um dos mais renomados pesquisadores gaúchos sobre o nazismo no Brasil. Ocorre que, em 15 de setembro de 1935, cinco dias antes do início da exposição, a bandeira nazista havia sido declarada por Adolf Hitler como oficial e única da Alemanha. Portanto, sustenta Gertz, a bandeira com a suástica, naquele momento, era a única possível para representar o país europeu, e, assim, ela estava disposta ao lado das demais nações.
Considerada exitosa, a exposição deveria se estender até meados de dezembro, mas acabou esticada até 15 de janeiro de 1936. Quase quatro meses de celebração no novo grande palco da cidade.
A Redenção é como se fosse um microcosmo do crescimento de Porto Alegre
CHARLES MONTEIRO
Professor da PUCRS e pesquisador da história da Capital
Já o trabalho de desmontagem das estruturas temporárias foi longo e, no início da década de 1940, outras intervenções vistosas passaram a ser feitas para ampliar a urbanização do parque. Vieram os recantos Oriental, Europeu e Alpino. Mais tarde, em 1957, foi inaugurado o majestoso Monumento ao Expedicionário, em homenagem aos brasileiros que foram à Segunda Guerra. O Auditório Araújo Vianna, último grande equipamento instalado na Redenção, é de 1964 – antes, funcionava na Praça Marechal Deodoro (Matriz), no Centro Histórico. A vasta arborização foi realizada em todo esse período de estruturação, já que, no princípio, a região era uma área alagadiça e descampada. Com 37,51 hectares, a Redenção é tombada, desde 1997, como patrimônio histórico, cultural, natural e paisagístico da Capital.
O Parque Farroupilha se consolidou como uma tradição, virou programa de final de semana, ponto de encontro da cidade, marco cultural de gerações, foi fundamental para transformar o bairro Bom Fim em ambiente de encantamento e inspirou artistas que cantaram Porto Alegre. Ali se fez época com o rock gaúcho e manifestações políticas à época da redemocratização, além de movimentos mais recentes do orgulho LGBT+. O Parque Farroupilha viu Porto Alegre crescer e amadurecer a partir dos arrabaldes da Osvaldo Aranha. Muita coisa aconteceu ao redor.
— O que é a Redenção no domingo pela manhã? É um espírito positivo da cidade — diz o historiador José Francisco Alves, em referência ao tradicional brique.
Para o professor Charles Monteiro, o parque é decisivo na identidade porto-alegrense:
— A Redenção é como se fosse um microcosmo do crescimento de Porto Alegre.