No outro lado da linha, do seu telefone fixo, Sérgio da Costa Franco hesitou em topar o convite de GZH para um perfil – a ideia, expliquei, era contar as histórias de um historiador. Ao contrário das pesquisas que levam seu nome, o motivo alegado nada tinha de crível.
– Vai ser uma decepção – disse ele.
Mas acabou recebendo repórter e fotógrafo em casa na tarde de uma quinta-feira. Porque, como ele mesmo lembrou no final da ligação, tem o “antigo hábito de ajudar os colegas jornalistas”. Aos 93 anos, é impossível calcular quantas entrevistas já deu.
Sérgio é um dos maiores pesquisadores da história do Rio Grande do Sul e, principalmente, da Capital. Autor de 29 livros, escreveu obras como Porto Alegre – Guia Histórico, um livro com quase mil verbetes que registra a evolução dos bairros, as ruas, as enchentes, as epidemias, os monumentos, as instituições culturais, os conterrâneos ilustres. Trinta anos após o lançamento, essa publicação teve sua quinta edição publicada em 2018.
O historiador Charles Monteiro o equipara apenas a Sandra Jatahy Pesavento, Walter Spalding e Francisco Riopardense de Macedo, já falecidos. De uma geração herdeira, Monteiro se debruçou sobre os textos de Sérgio durante a elaboração do mestrado e do doutorado em História Urbana.
– Ele propiciou ou estimulou o desenvolvimento de várias pesquisas acadêmicas a partir dos seus achados – relata.
Colunista do Almanaque Gaúcho, Ricardo Chaves vai além: defende que os gaúchos devem gratidão eterna a Sérgio. O jornalista acredita que não há nome de logradouro ou outra homenagem que possa retribuir “tudo o que ele fez colhendo e resgatando informações da Capital”.
Mas este não é um texto sobre a história que Sérgio revelou, e sim sobre a história que ele viveu. E essa começa em 1928 em Jaguarão.
Álvaro da Costa Franco, seu pai, veio do Rio de Janeiro para trabalhar como juiz na fronteira. Acabou deixando a magistratura para advogar na época que Sérgio nasceu. Juiz ganhava pouco naquele tempo, e a família só aumentava – ele teve oito filhos.
Mas a mudança na carreira foi marcada por uma tragédia. Álvaro foi assassinado no exercício da advocacia por “um homem que se sentiu contrariado”. Sérgio não dá muitos detalhes sobre esse episódio, que foi determinante para que sua esposa e filhos se mudassem para Porto Alegre na tentativa de recomeçar.
A mãe, Gilda, e os filhos chegaram à cidade em abril de 1935 em um barco Loide Brasileiro chamado Comandante Capela. Com o dinheiro do seguro de vida de Álvaro, compraram uma casinha na Rua José de Alencar, do tipo que na época era chamada de bangalô.
A primeira impressão que Sérgio teve do Menino Deus foi de um bairro “simpático e acolhedor”. No livro Memórias de um Escritor de Província, escrito quando fez 80 anos, relata que sobravam espaços verdes entre as casas, cheios de pomares e árvores de sombra, o que preservava um certo bucolismo de grandes chácaras. A única coisa que rompia o silêncio da noite era o estrondoso rugido de um monstro de ferro – como o menino imaginava o bonde República avançando nos trilhos da Carris.
É bem diferente do Menino Deus em que ele vive hoje. O historiador deixou o bairro ainda na infância, mas faz pouco mais de cinco anos que se mudou para a movimentada Avenida Getúlio Vargas, para “voltar às origens”.
Nossa conversa aconteceu nesse apartamento, onde o historiador passa o dia na companhia de uma cuidadora. Inicialmente na sala, em frente à biblioteca que enche uma parede inteira – inclui apenas parte do seu acervo, apressa-se em dizer. Logo migrou para o escritório, onde ele tem a maior parte das obras que escreveu. Também guarda ali décadas de colunas e crônicas publicadas no Correio do Povo e em Zero Hora, devidamente recortadas, agrupadas e encadernadas em 10 pesados calhamaços de capa verde.
Há um mapa antigo de Porto Alegre pendurado na parede ao lado da janela e uma lupa à mão sobre a escrivaninha. Troféus, algumas fotos emolduradas dos filhos e netos e outra do seu pai compõem a decoração do cômodo.
Sérgio tem problemas de audição e de locomoção, utiliza andador ou cadeira de rodas mesmo dentro de casa. Faz longas pausas durante a conversa, fica ofegante apenas de erguer o braço e se inclinar um pouco para apanhar um livro. Não tem o costume de assistir à TV ou ouvir música e admite que anda pegando no sono rápido quando pega algo para ler.
Seu maior prazer hoje é receber visitas de parentes. Naquela semana, havia recebido uma irmã de 103 anos. Eles costumavam disputar quem tem a melhor memória. Mas Sérgio ficou meio desconfiado de que ela esteja se esquecendo de alguns detalhes.
– Umas coisas que eu sempre tive como certo, sem dúvida nenhuma, ela diz agora “nãããão”, que não era assim. Mas tu vai discutir com uma mulher de 103 anos?
Professor e promotor
Filho de mãe viúva, Sérgio nunca pediu mesada. Começou a dar aula de reforço com 15 anos para ganhar seu dinheiro. “A vítima”, conta ele no seu livro de memórias, era um menino de família ilustre e rica “que aos títulos e glória do pai contrapunha uma vadiagem invencível”.
Entre as páginas do exemplar do livro, ele guarda uma foto sua de terno branco e semblante sério em frente ao Monumento à Independência de São Paulo. É o registro da sua breve aventura pela capital paulista, para onde se mudou para começar uma carreira e estudar aos 18 anos. Mas quando viu que não conseguiria conciliar trabalho com as aulas de Filosofia na USP, pegou um trem de volta para Porto Alegre. “Era destino amarrar minha vida ao Rio Grande do Sul, definitivamente”, destacou no livro de memórias.
Sérgio se formou em uma das primeiras turmas do curso de Geografia e História da UFRGS. Acabou indo para essa área por falta de aptidão nas ciências exatas. Admite que teve medo de prestar o vestibular que realmente desejava, para Medicina.
Seu primeiro emprego com registro em carteira profissional foi lecionar no extinto Curso Ginasial Ruy Barbosa, pelos 19 anos. Chegou a dar aula em salas com mais de 200 alunos. Compara a experiência com uma espécie de conferência pública, “que só chegava ao fim mediante a expulsão de meia dúzia de desordeiros”.
Alguns dos alunos eram mais velhos e também maiores. Para tentar impor respeito, cultivou um bigode grosso de guias caídas sobre os lábios. Jura que lhe envelhecia uns três anos.
– Era difícil, eu era muito guri. Mas acabei criando uma fama de professor durão – rememora.
Como professor, Sérgio não chegou a alcançar a idade que desejava aparentar. Isso porque entrou no curso de Direito, seguindo os passos de Álvaro, e acabou fazendo concurso para promotor de Justiça. Acha que a morte do pai tem a ver também com essa decisão.
– Eu me inclinava pela acusação de criminosos – diz.
Foi promotor de justiça em Encantado, Quaraí, Erechim e Soledade. Nessa última cidade, chegou a ser preso no começo da ditadura, em 1964. Os militares nem sabiam que, com 18 anos, Sérgio havia se filiado no Partido Comunista Brasileiro (PCB) (o que considera “um dos seus equívocos”).
Levaram-no para Santa Cruz, mas não tinham nada para incriminá-lo.
– Fui levado por uma Kombi da frente da prefeitura, cheio de gente à volta, os delinquentes se rejubilando: “Ainda bem que prenderam esse aí”. No dia seguinte, para surpresa da população local, eu apareci, lépido e faceiro.
Sérgio conseguiu transferência a Porto Alegre e acabou promovido a procurador de Justiça em 1976. Nessa função, aposentou-se precocemente, com 49 anos. Mas isso não quer dizer que ele parou de trabalhar. Na verdade, é aí que sua atuação como historiador e cronista decola.
Ele passou a dedicar-se diariamente a uma coluna no Correio do Povo, jornal para o qual começou a colaborar décadas antes, e chegou a coordenar os editoriais da publicação, de 1978 a 1983. Desenvolveu a rotina de passar as manhãs na redação e dedicava as tardes à pesquisa histórica.
Até então atento a toda a história do Estado, fez seu primeiro trabalho especificamente sobre Porto Alegre no começo da década de 1980. Foi um ensaio sobre a evolução do comércio da cidade, desde o nascimento da vila até meados do século 20, encomendado pela Associação Comercial de Porto Alegre.
Seu habitat era o Arquivo Histórico Municipal, na época na Rua Jerônimo de Ornelas. O pesquisador leu todos os livros de atas da Câmara Municipal desde o século 18 até o primeiro ano da República, além dos relatórios de prefeitos e de intendentes. Daí saíram obras como Porto Alegre Ano a Ano, uma cronologia histórica da cidade de 1732 a 1950.
Sérgio sempre se baseou em documentos. Dos relatos orais, costuma desconfiar.
– A história oral serve para mentir e inventar – opina. – Sempre tive a preocupação de ser exato na informação.
Uma das lendas urbanas de Porto Alegre, o “linguiceiro” da Rua do Arvoredo é um exemplo disso: Sérgio afirma que o serial killer José Ramos nunca produziu embutidos com a carne das suas vítimas. É que os corpos foram encontrados inteirinhos, sem pedaços faltando.
– É uma grande bobagem, e até hoje tem cronista que escreve sobre isso como se fosse verdade.
O historiador também já decepcionou jornalistas ávidos por entrevistas emocionantes sobre feitos heroicos dos farrapos. Nunca mergulhou no assunto porque não gostava de história militar – nem do discurso de glorificação sobre a Revolução Farroupilha. Mas fez um interessante resgate desse período no ensaio Porto Alegre Sitiada. Um muro de pau e terra partia das imediações da atual Voluntários da Pátria, avançava pela Pinto Bandeira e seguia por João Pessoa e Rua da República até desaparecer às margens do Guaíba. Era um instrumento para proteger a Capital, de domínio imperialista, dos ataques dos revolucionários.
Seu último livro foi lançado dias antes da pandemia de covid-19 alcançar a Capital. Em Cena os Presidentes – De Deodoro a Bolsonaro tem 292 páginas e foi lançado pela Editora Edigal. Nele, Sérgio faz breves biografias de todos os presidentes do Brasil, a partir de Deodoro da Fonseca, em 1884. Questionado sobre o atual, relata que se atém aos fatos no material. O que não significa que não tem opinião – e forte:
– É um maluco despreparado.
UMA SAUDADE DO PASSADO
“Só a mim e à Ignez interessa relembrar como nos encontramos num final de tarde, na praia de Ipanema, e como tornamos a encontrar-nos na Rua da Praia, à noite, numa dessas coincidências que dificilmente ocorrem em cidade grande.”
Esse é mais um relato do seu livro de memórias, que publicou quando ele e Ignez Maria Casella da Costa Franco estavam no 57º ano de casamento, de 66 que viriam a completar.
– Sem brigas – acrescenta o historiador.
Depois da feliz coincidência relatada, o namoro dos dois avançou rapidamente. Não esmoreceu nem quando ela foi trabalhar em uma escola no interior de Viamão. Prometeram uma intensa troca de cartas e cumpriram: a correspondência apaixonada ia e vinha de ônibus para a localidade de Capão da Porteira, que naquela época não tinha serviço de correios.
Eles se casaram em dezembro de 1951 e tiveram cinco filhos: Sérgio, Maria Ignez, Miguel, Fernando e César.
Maria Ignez lembra da concentração descomunal do pai trabalhando em uma casa barulhenta, cheia de crianças:
– Ficava a gente pulando ao redor dele e o pai aqui “brrrrr” na máquina de escrever.
As risadas de Sérgio durante a entrevista foram raras e contidas. A exceção se deu quando Maria Ignez, a filha que seguiu seus passos como promotora, lembrou das viagens que eles faziam pelo Interior. Mais especificamente do deslocamento da família entre Quaraí e Soledade, que levou nada menos que cinco dias.
O “célebre Chiquinho”, como Sérgio chamava sua Ford Prefect, modelo 1950, estragou pela primeira vez com apenas 30 quilômetros percorridos. Acabariam frequentando três oficinas mecânicas pelo caminho.
Sérgio se orgulha da sua trajetória como colunista, promotor e historiador – destaca que o orgulho é uma virtude, e que eu não devo confundi-la com vaidade. Mas mergulha no saco dos pais corujas ao colocar os filhos como a coisa mais importante da sua história.
Quando pergunto o que deseja para a Capital, que deve completar 250 anos em março, demonstra todo seu saudosismo:
– Meu desejo seria a Porto Alegre que eu conheci, em 1935. Ela era fantástica.
Sérgio acredita que, pelo menos em parte, foi essa saudade do passado que acabou motivando sua dedicação à pesquisa da história da cidade. Mas agora esse resgate já não lhe traz o prazer de antes. É que acaba se misturando à memória da esposa, que faleceu há quatro anos.
– Tudo o que há de bom em Porto Alegre é ligado a ela, às lembranças dela.