O centro de Porto Alegre ficou debaixo d’água entre abril e maio de 1941. No lugar dos Cadillac e dos bondes, barcos passavam pela Rua da Praia, Sete de Setembro, Borges de Medeiros. Oitenta anos depois, a altura a que a água chegou segue marcada na parede do Mercado Público, a mais de um metro do chão.
A enchente de 1941 foi a maior já vista na Capital. Desabrigou cerca de 70 mil pessoas, o que representava um quarto da população da cidade na época.
— Foi o maior embate de Porto Alegre com a natureza — destaca o jornalista Rafael Guimaraens, autor do livro “A Enchente de 41”, publicado pela Editora Libretos.
A chuva começou pelo dia 10 no Rio Grande do Sul, durante a Páscoa. Porto Alegre viveu temporais quase diários: foram 22 dias chuvosos, totalizando 619mm de volume acumulado. Transbordaram os rios Caí, Jacuí, Sinos e Gravataí, todos que alimentam o Guaíba, e fortes ventos vindos do Sul pela Lagoa dos Patos ainda tratavam de represar as águas.
Um a um, os meios de transporte paravam, como Rafael Guimaraens conta no livro. Começou pelos navios: no cais do porto, os guindastes ficaram sem energia. Com um trecho da ferrovia Porto Alegre-Santa Maria submerso, os trens não chegavam mais, e o Aeroporto Municipal, no bairro São João, foi fechado com um metro de água na pista.
A água tomou o prédio dos Correios e Telégrafos, onde ficavam as correspondências que chegavam a Porto Alegre. Mais tarde, os telefones também ficariam mudos.
— A enchente começou muito lenta, o pessoal teve tempo de sair das suas casas. E por isso não morreu muita gente. Teve um homem que virou a canoa e morreu no Guaíba, um outro que morreu numa casa de bombas: a água invadiu e ele acabou pressionado — acrescenta Guimaraens, lembrando que as doenças originadas pelo contato com a água levariam a mais óbitos quando as ruas já estavam secas.
Quando a água alcançou o cais o porto, o governador Cordeiro de Farias chamou o prefeito Loureiro da Silva e criou uma força-tarefa para atender os desabrigados. O governo cancelou as aulas e transformou escolas em albergues. Também precisou tabelar os preços de arroz, banha, farinha, feijão, batata, açúcar e outros alimentos, pois tinha gente cobrando valores exorbitantes. No final da enchente, 117 comerciantes estavam presos na Casa de Correção por desrespeitar a tabela.
Hoje nome de avenida, o delegado de polícia Plínio Brasil Milano foi um dos grandes nomes desse episódio da história, aos 33 anos. Além de se envolver no controle de preços, ele liderou uma logística de resgates, colocando os barcos que havia na cidade a serviço de quem precisava.
Filho dele, o engenheiro eletricista Paulo Caldas Milano, 84 anos, tinha apenas quatro anos na época. Mas se recorda do pai voltando para casa na Rua Coronel Bordini cansado e encharcado.
— Naquele tempo não existia Defesa Civil, e ele assumiu essa função. Lembro que ele chegava em casa todo molhado, tomava um banho, trocava de roupa, comia alguma coisa e saia de novo — conta Paulo.
O prefeito foi despachar no Palácio Piratini porque o Paço Municipal foi invadido pelo Guaíba. As fábricas do Quarto Distrito foram muito afetadas também. Indústrias como a tecidos Renner, a Gerdau, a Fiação Porto-Alegrense e cerca de 200 outras tiveram que parar as atividades.
No dia 5 de maio, o centro passou a viver um cenário inimaginável. As águas alcançaram a Rua da Praia, invadindo o Café Colombo, o Cinema Central e o comércio. A Praça da Alfândega ficou inundada. Ali, na esquina com a General Câmara, o fotógrafo João Alberto Fonseca da Silva fez um dos registros mais emblemáticos da catástrofe: uma baleeira com pelo menos sete pessoas a bordo flutuando sem dificuldades entre as lojas e cinemas fechados do Largo dos Medeiros (imagem no topo desta matéria).
— Era numa das esquinas mais movimentadas da cidade. Imaginar que um barco daquele tamanho pudesse estar navegando ali dá a dimensão do que foi essa enchente — comenta o fotojornalista Ricardo Chaves, colunista do Almanaque Gaúcho.
A enchente foi um dos primeiros temas do então aprendiz de fotografia João Alberto, como ele mesmo contou a Chaves no ano de 2009. Ele trabalhava no Serviço Geográfico do Exército na época, fazia aerofotogrametria, topografia e escala. Foi lá que conheceu o tenente Jorge Lopes de Lima, que lhe emprestou a primeira câmera fotográfica e sugeriu que registrasse a cheia. Ainda previu:
— Isso ainda vai ser importante.
Com uma máquina 6x9 de foles, o jovem saiu pela cidade a bordo de uma carroça e documentou a enchente. João Alberto morreu em 2011, aos 91 anos. O acervo de imagens de João Alberto foi doado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UniRitter pelo próprio fotógrafo em 1997.
Porto Alegre ano 250
O Grupo RBS preparou uma série de matérias para fazer a contagem regressiva para os 250 anos de Porto Alegre, que serão completados dia 26 de março de 2022. Mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
A cidade fica sem luz
Um dos momentos mais desesperadores da enchente de 1941 se deu quando as luzes da cidade se apagaram. Logo, o abastecimento de água seria interrompido também.
Foi no dia 7 de maio, uma quarta-feira, que as águas alcançaram a Usina do Gasômetro. Desesperados, funcionários tentaram construir um muro de tijolos para proteger as máquinas que produziam e distribuíam energia para a cidade. Mas os esforços não foram suficientes: a água foi entrando na usina, molhando caldeiras, bombas de alimentação e britadeiras para o carvão. “Às oito da noite, a iluminação pública apagou, os bondes estavam parados e as luzes das residências se esmaecem lentamente, até que a cidade ficou completamente às escuras”, narra o livro Enchente de 41. O nível máximo do Guaíba foi registrado no dia seguinte: 4m76cm.
Mesmo depois do cessar da chuva, a cidade levou tempo para se recuperar. Estima-se que 600 estabelecimentos comerciais foram afetados pela enchente, e muitos não voltaram a abrir. O contato com a água contaminada ainda levaria a surtos de leptospirose e outras infecções após a enchente.
Enchente justificou construção de muro
Enquanto superava o trauma e um prejuízo superior a US$ 50 milhões, Porto Alegre passou a planejar medidas para se proteger de novas cheias. A enchente de 1941 acabaria justificando a construção do Muro da Mauá.
Erguida no começo dos anos 1970, a estrutura tem três metros abaixo e três acima do solo, com 2.647 metros de comprimento. Ela faz parte do Sistema de Proteção Contra Cheias,que conta com 68 quilômetros de diques, 14 comportas e 19 casas de bombas.
O muro que afasta o centro da Capital do Guaíba é motivo de polêmica há anos, especialmente por esconder o lago. No comando do Paço desde janeiro, o prefeito Sebastião Melo é mais um que defende a derrubada dele, e recentemente o governador Eduardo Leite acenou na mesma direção. O edital de concessão que o Governo do Estado está elaborando para o Cais Mauá deve incluir a diminuição ou até mesmo a demolição do muro. Estudos contratados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) estão avaliando as alternativas.
Enquanto isso não acontece, a prefeitura está buscando um parceiro que adote 750 metros do muro, para enfeitar com vegetação, renovar pintura e apresentar outras melhorias.
Segundo cálculos feitos pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS a partir de uma série de dados de 120 anos, o período de retorno de uma enchente assim é de 1,5 mil anos, o que significa uma chance em 1.500 de ocorrer em um ano qualquer. O diretor do instituto, Joel Avruch Goldenfum, explica:
— O ajuste de modelos probabilístico aponta para esse período de retorno. Mas isso não significa que esse evento só se repetirá daqui a 1.500 anos: significa que a probabilidade de ocorrer em um determinado ano é pequena, mas, mesmo assim, esse evento pode ocorrer novamente em qualquer ano. As condições físicas que propiciaram a ocorrência ainda existem.