A observação é do historiador Sérgio da Costa Franco. Desde que os primeiros documentos se referem a uma incipiente povoação nascida junto às águas do Guaíba, em meados do século 18, a cidade sempre levou porto no nome. Primeiro, Porto de Viamão. Depois, Porto dos Casais. Afinal, Porto Alegre. Melhor dizendo: Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre, nome que recebeu em 26 de março de 1772. Nesta sexta-feira, se completam 249 anos desse batismo.
Surpreende, portanto, que Porto Alegre só ganharia um porto de verdade 149 anos depois da fundação, no inverno de 1921. E a relação da cidade com ele é um tanto representativa de como os porto-alegrenses lidam com as questões da cidade desde sempre: inclui brigas com o governo federal, rompantes de grandeza, momentos de paixão e desdém, ascensão e decadência igualmente rápidos em meio a erros urbanísticos irreparáveis. Por fim, uma novela de décadas sobre revitalização na qual só mudam os personagens.
A ideia de um porto começou a ganhar corpo no final do século 19, quando, passados os dissabores das revoluções Farroupilha e Federalista, Porto Alegre via a população crescer e a indústria progredir. Em 1900, já ultrapassava 73 mil habitantes. O desenvolvimento da agricultura comercial da região serrana, fruto da imigração alemã e italiana, demandava da Capital novas vias para escoar a produção.
A relação da cidade com as águas, todavia, seguia um tanto amadora. Se dava por meio de docas e trapiches de madeira que entravam Guaíba adentro. Uma das docas mais importantes foi construída em 1842 e ficava onde hoje é a Praça Parobé, como um ponto de abastecimento do vindouro Mercado Público.
Documentos da Câmara Municipal da década seguinte dão ideia de como ela era concorrida. Políticos da Região Metropolitana precisavam pedir autorização com antecedência para utilizar as argolas numeradas para suas canoas, iates, lanchões e o que mais desejassem atracar no centro da Capital. Na mesma época, a Praça da Alfândega também ganhou um extenso trapiche que sobreviveu até 1912, quando as obras do porto começaram de fato.
O aspecto não era dos mais agradáveis. As madeiras viviam apodrecidas e a fartura de restos de comida tornava a região um paraíso para ratazanas. Também era comum as pequenas embarcações encalharem ali, dada a água rasa e cheia de sedimentos. Um mapa de Porto Alegre de 1916 mostra toda a orla ainda espetada por trapiches.
À época, o então governador Borges de Medeiros já torcia o nariz sobre o portentoso bigode para a muvuca de embarcações. Tinha planos bem mais ambiciosos.
Porto Alegre ano 250
Porto Alegre completa 249 anos neste 26 de março ainda sob impacto da pandemia do coronavírus. Para o Grupo RBS, a data também marca o início da contagem regressiva para os 250 anos que serão completados no ano que vem. Assim, mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
Cândido Godoy pensa alto
O canetaço que deu início ao porto ocorreu ainda no governo de Carlos Barbosa, em 1911. Ali firmou-se um contrato para, em 20 meses, construir um trecho de 140 metros de cais paralelo ao litoral em frente à Praça da Alfândega, justamente para encerrar a bagunça em torno do trapiche. Porém, o governador também teve o cuidado de encomendar um projeto completo de cais ao então secretário de obras públicas, o engenheiro Cândido José de Godoy.
Godoy caprichou e transformou um simples projeto de ordenamento urbano no que, na visão dele, seria a oportunidade de salto de desenvolvimento econômico sem precedente. A tese visionária era de que, embora banhada por um lago, Porto Alegre deveria apostar em um porto com estrutura para navegação marítima. Seria o maior cais fluvial do Brasil.
Conforme Godoy, para atracar nas águas rasas de Porto Alegre, as embarcações tinham de ser pequenas, como de praxe na navegação fluvial. Mas, sendo pequenas, não tinham condições náuticas para pegar a produção local, atravessar a Lagoa dos Patos e ganhar o mar. Se conseguisse construir um porto de águas profundas e infraestrutura suficiente, Porto Alegre ganharia acesso direto a águas internacionais, com possibilidades de desenvolvimento inimagináveis.
Pelas contas de Godoy, o movimento diário que era de 600 toneladas em Porto Alegre poderia saltar para mais de 7.700. Era uma época em que a cidade importava 43% mais cargas do que exportava, uma equação que deveria ser invertida.
Borges se empolga
De volta à "presidência do Rio Grande do Sul" em 1913, Borges de Medeiros se empolgou com a ideia e foi além, comprando briga com o governo federal para tirá-la do papel. Ao perceber as intenções gaúchas, o governo federal tentou tomar conta da obra, argumentando na Justiça se tratar de um porto de navegação oceânica, de competência da União, como ocorria nos portos de Rio Grande e de Pelotas.
Borges disputou com o regulamento debaixo do braço: argumentou que portos de águas fluviais interiores de um território eram de competência do respectivo Estado. O governo gaúcho levou a melhor, mas em compensação teve de arcar com a totalidade do custo do serviço. Em abril de 1914, celebrou o contrato com uma empresa francesa para realizar os trabalhos que transformaria a orla em um canteiro de obras por quase duas décadas.
Foram aterrados mais de 180 metros de orla para abrir as avenidas Mauá (concebida como Rua do Porto) e Julio de Castilhos e para remodelar a antiga Rua das Flores, rebatizada posteriormente de Siqueira Campos. Algumas das casas que serviram de depósito para a obra na Rua dos Andradas foram conservadas. Hoje, elas abrigam o Museu do Trabalho.
Em 1º de agosto de 1921, Borges inaugurou os primeiros 491 metros da obra: o pórtico central, o armazém B-1, um prédio administrativo e os dois primeiros guindastes. Sete anos depois, encerrava o governo com 10 armazéns erguidos ao longo de 1.652 metros. Oito deles com a estrutura metálica produzida pela empreiteira francesa Daydé, a mesma responsável pela Ponte Notre Dame e pela estrutura de ferro à vista do Grand Palais, na Avenida Champs-Elysées, em Paris.
Em 1928, quando a Rua do Porto foi rebatizada em homenagem ao Visconde de Mauá, o Cais Mauá ganhou o apelido pelo qual é conhecido até hoje.
Lua de mel
Em que pese o impacto da crise de 1929 nos anos seguintes, a inauguração e expansão do porto desenvolveu a região e mudou a relação dos porto-alegrenses com ela. Se por um lado os mais de cinco metros de profundidade inviabilizavam que se usasse toda a extensão do Guaíba para nadar ou andar de barco em pleno Centro, por outro lado o local promovia novas dinâmicas de lazer e de comércio.
Fotos da década de 1930 mostram uma região bem diferente de hoje, com calçadas amplas e pouquíssimos veículos. Prédios históricos estatais, que hoje sediam casas de cultura como Memorial do Rio Grande do Sul, Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) e Farol Santander tinham vista para um porto de portas abertas. Marinheiros, estivadores, turistas e curiosos orbitavam o local.
Em frente ao Mercado Público, onde hoje está a estação do trensurb, havia um segundo mercado, apenas para hortifrutigranjeiros, e uma escadinha Guaíba adentro para o comércio à moda antiga, direto dos comerciantes embarcados.
Até meados da década de 1960, ainda era possível adentrar o porto para tentar obter uma calça Lee contrabandeada – e correr o risco de ser engambelado pelo negociante –, para comprar barras de gelo no Frigorífico do Porto, inaugurado em 1936, ou apenas para passear por locais como a bela Praça Edgar Schneider, construída para os trabalhadores do porto e hoje um local fantasma atrás dos trilhos do trensurb.
Enquanto isso, o porto cumpria seu papel para um crescimento nas exportações do Rio Grande do Sul de 36,7% entre 1933 e 1938. O primeiro abalo nessa relação ocorreria pouco tempo depois, em abril de 1941.
Tempestade perfeita
Ao longo de 22 dias entre abril e maio de 1941, Porto Alegre enfrentou a maior enchente de sua história. Com a expansão populacional em leque a partir do Centro, Porto Alegre teve quase um quarto da sua população desabrigada e dois terços dos comerciantes afetados.
Ao subir 4m76cm, o Guaíba inundou prédios como o Mercado Público e o Paço Municipal, transformou a Borges de Medeiros em hidrovia e chegou a molhar canelas no Menino Deus e Azenha.
Até hoje, o primeiro armazém à esquerda do pórtico do Cais Mauá tem uma placa com a data 7-5-1941 e uma seta marcando a altura da água. Após superar o trauma e um prejuízo superior a US$ 50 milhões, Porto Alegre passou a planejar medidas protetivas contra o parceiro, outrora dócil, Guaíba.
Mas a tempestade que fez Porto Alegre repensar o Cais Mauá não foi apenas a literal. Em 1944, teve início o Plano Rodoviário Nacional, que interligou estradas e permitiu que a maior parte da produção deixasse o Estado de caminhão. Na década de 1950, embora ainda com bom movimento, a Capital passou a sofrer com a falta de barcos dispostos a abarcar na orla congestionada, sacrificando produção nos armazéns.
Não bastasse, o advento do contêiner, criado em 1956, dispensou força de trabalho humana nos portos e aumentou em muito a escala das operações, exigindo instalações portuárias gigantescas e, por isso, afastadas de áreas urbanas.
A solução econômica passou pela conclusão dos Cais Navegantes (1956) e do Cais Marcílio Dias (1958), mais afastados Jacuí acima, que somados tem cinco quilômetros de extensão e seis metros de profundidade. Restava, para o Cais Mauá, a solução urbanística. Encontrar a resposta se tornou mais complicado após um tiro no pé de 3 metros de altura por 2,6 quilômetros de comprimento.
Problema atrás do muro
Ironicamente, o cais que desenvolveu o Centro acabou sufocado e escondido por ele. De um lado da Avenida Mauá, em razão da proliferação de repartições públicas, escritórios e garagens verticais, prédios se ergueram e cobriram a vista. Do outro, o famigerado muro foi erguido como parte do sistema de contenção de cheias e inaugurado em 1974.
Embora o pórtico, os armazéns e guindastes restantes tenham sido tombados entre 1983 e 1996, urbanistas apontam que o Cais Mauá se tornou um problema menos desconfortável graças ao muro, obra que, aliada aos viadutos da rodoviária e à última extensão do trensurb, ajudaram a esconder o lago e o antigo porto.
Quanto ao Muro da Mauá, o ímpeto dos governantes para substituí-lo por estruturas mais racionais parece cada vez mais efêmero. O prefeito Sebastião Melo, por exemplo, manifestou vontade de derrubá-lo em 5 de janeiro e recuou 16 dias depois, quando falou em embelezá-lo.
O restante da área vem sendo pensado e repensado a cada governo, sempre com projetos ambiciosos de espaços multifuncionais. Já foram sugeridas atrações como boliche, bilhar, saunas, casas noturnas e até estúdios de cinema. Em 2008, um edital de revitalização foi realizado com obras previstas até 2013, mas o contrato foi cancelado em 2019 pelo governador Eduardo Leite após mais de uma década de inércia.
Uma nova iniciativa, o Embarcadero, está prestes a ser inaugurada em uma das extremidades do local tão logo a pandemia permitir. O maior legado do Cais Mauá, porém, é imaterial. Convide um porto-alegrense a desenhar sua cidade e ele provavelmente escolherá lápis de uma paleta entre o amarelo queimado e o vermelho ferrugem. Esboçará uma sequência de telhadinhos ao lado de uma chaminé. Espaços que resistem no imaginário, embora saibamos cada vez menos sobre eles.
Fontes: Charles Monteiro, professor do curso de História da PUCRS, Maturino Salvador Santos da Luz, professor de Arquitetura da PUCRS, José Lourenço Degani, professor de arquitetura aposentado da UniRitter, Carolina Heinen, designer pela UniRitter, Caroline Beatriz Picolo, arquiteta pela UniRitter, livros "Porto Alegre e Seu Comércio" e "Porto Alegre Guia Histórico", de Sérgio da Costa Franco, e site da prefeitura de Porto Alegre.