Ao final de 2019, pensando em um local para expandir os negócios para fora do Mercado Público, Sérgio Lourenço, permissionário da Banca do Holandês, encomendou um estudo à Space Hunters, empresa especializada em apontar o melhor local para abrir estabelecimentos comerciais.
– Eles me apresentaram um mapa de calor dos melhores pontos da cidade conforme o meu negócio. Fiquei surpreso e entristecido. Tirando o próprio Mercado Público, não havia nenhum ponto aquecido no Centro Histórico. É o impacto do descaso com a região – comenta Lourenço, prestes a abrir sua loja na região do bairro Mont'Serrat.
Para chegar a mapas como o apresentado ao empresário, a Space Hunters utiliza o chamado big data: cruza dados públicos de fontes como IBGE e Receita Federal e aponta regiões tendência para novos negócios na malha urbana. O diagnóstico sobre o Centro vem de um acumulado de décadas.
– Embora em queda, os índices em relação a moradores, como densidade e renda, ainda são bons. Porém, a coisa muda quando observamos os índices de abertura de empresas nos últimos 40 anos. O último período em que houve grande abertura de CNPJs no Centro foi nos anos 1980. Na década passada, a abertura foi mais intensa fora do que dentro dele – explica Francisco Zancan, diretor da empresa.
Os dados contrastam o cenário de 10 anos atrás. Em 20 de fevereiro de 2011, a reportagem de capa de Zero Hora (leia abaixo) destacava o momento favorável do bairro. Após perder mais de 15 mil moradores entre 1980 e 2005, o bairro voltara a ser atraente para se viver graças aos apartamentos espaçosos oferecidos por um mercado imobiliário aquecido e também por ações de revitalização bem sucedidas, como a inauguração do Pop Center e o entorno da Praça XV. Com as ruas livres de ambulantes, espaços comerciais também se valorizaram.
Pela primeira vez em décadas, houve aumento de população no bairro, de 36,8 mil habitantes em 2000 para 39,1 mil em 2010, conforme o Censo (o levantamento de 2020 foi adiado em razão da pandemia).
De lá para cá, os números degringolaram. No final de 2010, de acordo com o Sindicato da Habitação do Estado (Secovi), o bairro tinha 608 imóveis disponíveis para locação, entre eles 325 comerciais e 254 residenciais. Em dezembro passado, o número mais do que triplicou e chegou a 2.239. Tanto comerciais quanto residenciais apresentam forte esvaziamento: são 1.280 imóveis comerciais e 749 residenciais para locação.
O que já era preocupante se agravou na pandemia e tende a piorar com o impacto residual dela. A expansão do home office afetou tanto os moradores do Centro, que passaram a buscar casas mais afastadas, em bairros sossegados, quanto os funcionários de escritórios da região. Já os grandes magazines de rua, outro ponto forte da região, tiveram a concorrência com as vendas pela internet acentuadas. As lojas que se mantêm na região o fazem mais pela exposição da marca do que pelo ponto de venda.
O que diferentes especialistas apontam é que o crescimento dos anos 2000 se revelou efêmero não apenas pela crise econômica, mas porque não houve cuidado em manter as melhorias em curso e tampouco aplicação de medidas estruturais para colher frutos a médio e longo prazo, como mudanças no Plano Diretor para a região.
Compromisso de campanha do prefeito Sebastião Melo, uma revitalização do Centro Histórico duradoura e eficiente exigirá medidas mais criativas, baratas e envolvendo diferentes agentes do poder público e da iniciativa privada. Nesta reportagem, gestores e especialistas apontam caminhos.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
1) Aprender com o passado
Não é preciso olhar muito no retrovisor para enxergar boas iniciativas de impacto positivo. Até meados da década passada, o projeto Viva o Centro foi um dos responsáveis pelo renascimento da região, a começar pelo nome. O Centro, que remetia à muvuca do comércio de rua, passou a se chamar Centro Histórico e ganhou iniciativas para melhorar a imagem, a infraestrutura e o patrimônio cultural da região.
Para ficar nas iniciativas mais significativas: com verbas do projeto Monumenta houve a recuperação de prédios públicos, de 40 imóveis privados e mais de 10 praças. Foram feitas intervenções urbanísticas como a remodelagem do Largo Glênio Peres, a inauguração do camelódromo, a extensão da Borges de Medeiros e a retirada das paradas em frente do Mercado Público. Surgiram atrações como o Caminho dos Antiquários, as caminhadas do Viva o Centro a Pé e a Noite dos Museus. Porém, muitos projetos perderam fôlego.
– Em que pese o contexto econômico diferente, esses projetos não poderiam ser cíclicos por administração. Precisa ser uma política de Estado e constante. Sem cuidado e continuidade, voltam questões como os camelôs – opina Glênio Bohrer, arquiteto, professor da UFRGS e coordenador do Viva o Centro entre 2005 e 2012.
A missão de pensar a região a longo prazo é do secretário de Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, apelidado por Melo de “prefeito do Centro”.
– Até aqui, as ações no Centro foram tópicas, como se a região fosse um arquipélago de ilhas sem contato uma com as outra. É preciso elaborar um cronograma de ações que enxerguem o Centro como um sistema integrado – aponta o secretário.
2) Plano Diretor mais flexível
Arquiteto e diretor da Space Hunter, Francisco Zancan aponta como um dos fatores de decadência do Centro o engessamento legal das suas construções:
Qualquer região em que não vale a pena demolir um imóvel em ruínas para construir outro no lugar é uma região fadada ao fracasso
FRANCISCO ZANCAN
Arquiteto e diretor da Space Hunter
– Qualquer região em que não vale a pena demolir um imóvel em ruínas para construir outro no lugar é uma região fadada ao fracasso, em razão do desinteresse do mercado imobiliário. No caso do Centro, se considerado o índice construtivo baixo e os imóveis inventariados, fica pouco atraente construir ou reformar qualquer coisa por ali.
Um dos mecanismos para mudar isso é a revisão do Plano Diretor, algo que deveria ter ocorrido em 2020, mas foi adiado em razão da pandemia. A conclusão está prevista para 2022. O secretário de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, reconhece o problema:
– É o que trava, por exemplo, a solução para o Esqueletão da Marechal Floriano ou para os prédios-estacionamento ociosos da Avenida Mauá. O plano torna pouco vantajoso construir algo ali e dificulta que se mude a função dos imóveis. O Centro Histórico deverá exigir um olhar exclusivo do plano, possivelmente com gabaritos conforme o objetivo para cada quarteirão dele.
Segundo Bremm, por ter sido elaborado em 1999, o Plano Diretor considerou o Centro uma região já bem povoada, tornando mais atraente para a construção civil investir em regiões mais distantes da cidade, estimulando uma expansão horizontal na esteira de obras viárias como as avenidas perimetrais.
– Não era absurdo à época, mas hoje é uma visão ultrapassada de cidade. Hoje, urbanistas falam em cidade de 15 minutos, em menos carros, em medidas que incentivam um adensamento maior das populações, até para aproveitar a infraestrutura já existente nesses locais – avalia.
3) Planejar habitação e multiplicar usos
Se em outros tempos o fluxo de atividades comerciais garantia uma economia aquecida, hoje é consenso entre especialistas que o Centro Histórico precisa ser repovoado. É o que traria mais segurança e atrairia pequenos empreendimentos, como bares e restaurantes. A economia passaria também a funcionar em horários ermos, como noites e finais de semana.
– Agora que as pessoas aprenderam que elas não precisam pagar um aluguel para trabalhar, os prédios de escritórios estão condenados. O pulo do gato será incentivar usos híbridos: comércio e moradia. O Centro é e sempre será uma região de exceção para moradores, mas pode haver, sim, interessados em viver ali. Quantos prédios abandonados do Centro poderiam abrigar aluguel social, por exemplo? Conforme o imóvel, pode haver outros possíveis moradores: solteiros, estudantes, imigrantes, artistas... – aponta a urbanista Luciana Marson Fonseca, diretora da Escola Livre de Arquitetura (ELA).
Uma inspiração pode vir de São Paulo, onde Estado e prefeitura realizaram uma parceria público privada (PPP) de interesse social para repovoar imóveis no centro da capital. A iniciativa reformou imóveis e financiou sua aquisição para famílias com renda de até R$ 5,7 mil mensais. Para reduzir a chance de especulação imobiliária, só foi aceito quem já residia na cidade, sem imóvel próprio e com vínculo empregatício na região – os interessados participaram de um sorteio.
A construtora parceira vencedora da PPP, além das obras dos imóveis, se encarregou de revitalizar uma praça, reformar uma unidade de Corpo de Bombeiros e construir uma nova creche. Para tal, a contrapartida estatal foi de R$ 465 milhões divididos em 20 anos. O programa já entregou 1.443 unidades habitacionais de 3.683 previstas.
4) Otimizar recursos públicos e privados
A escassez de recursos públicos exigirá da prefeitura esforço para otimizar investimentos. Em alguns casos, isso já está ocorrendo. Há R$ 40 milhões em recursos do Banco de Desenvolvimento da América Latina (o mesmo que financia a revitalização da Orla) assegurados até o final de 2022 para uma reforma de calçadas e pavimentos no chamado “Quadrilátero do Centro”, área delimitada pelas ruas Marechal Floriano, Doutor Flores e avenidas Voluntários da Pátria e Salgado Filho. Mas a prefeitura devolveu o projeto à prancheta. Ele deverá incluir também uma reforma no Viaduto Otávio Rocha, com espaços comercias passíveis de concessão à iniciativa privada, como está sendo feito na Orla.
É mais fácil buscar os interesses dos empresários que combinem com o interesse público e usar isso como uma mola propulsora
GLÊNIO BOHRER
Arquiteto, professor da UFRGS e coordenador do Viva o Centro entre 2005 e 2012
Sobre as parcerias com a iniciativa privada, o arquiteto Glênio Bohrer aconselha apostar mais no interesse em comum do que em investimentos privados com motivação institucional, como adoções de praças ou monumentos. Sugere, por exemplo, uma união dos comerciantes do quadrilátero para tornar a área uma espécie de shopping ao ar livre, com diversificação de negócios, segurança reforçada e comunicação visual unificada e diferenciada.
– Acredito mais nesse tipo de cooperação quando existe interesse mútuo. É mais fácil buscar os interesses dos empresários que combinem com o interesse público e usar isso como uma mola propulsora.
Em outras palavras, Francisco Zancan, da Space Hunters, diz algo semelhante:
– É preciso parar de enxergar a iniciativa privada como uma vaquinha a quem o poder público de vez em quando pede leite.
5) Abraçar o Cais Mauá
Ao deixar de ser considerado uma área portuária, em outubro passado, o Cais Mauá se livrou de uma das amarras burocráticas que atravancavam projetos de revitalização. O primeiro contrato celebrado, o do Embarcadero, junto aos armazéns próximos à Usina do Gasômetro, tem inauguração programada para o final de março.
Embora seja administrado pelo governo do Estado, o secretário Cezar Schirmer tem como uma das suas metas incluir cada vez mais a prefeitura nas decisões sobre o espaço. O entendimento é que os 2,5 quilômetros de frente para o Guaíba podem servir para dois fins: embelezar a entrada da cidade e tornar a Avenida Mauá uma área mais humanizada e integrada ao Centro, convidativa a pedestres e ciclistas.
– O governo do Estado precisa estar envolvido em discussões maiores do que o urbanismo da Capital. Isso é obrigação da prefeitura e não podemos mais nos omitir. Se os galpões são uma questão mais complexa, queremos ao menos assegurar que o Cais se torne uma área de circulação e contemplação – aponta Schirmer.
6) Mercado Público como farol
Já está na mesa do prefeito Sebastião Melo uma proposta de administração do Mercado Público pelos atuais permissionários pelos próximos 25 anos. Eles realizariam investimentos como a conclusão do segundo andar, mas ainda não está claro quais seriam as mudanças na operação em contrapartida.
Especialistas veem o local como um polo de atração ao Centro se houver ampliação de horários, como o das áreas de gastronomia, à noite, e aos domingos, atraindo novos públicos para compras além dos que circulam pelo local em meio à rotina de trabalho.
À frente do escritório Natureza Urbana, um dos que participou da elaboração da proposta dos permissionários à prefeitura, o arquiteto Pedro Lira ressalta a importância da multiplicar os usos do Mercado Público.
– O segundo andar é uma possibilidade de fazer com que as pessoas não pensem no Mercado apenas como um local para fazer compras, mas também para atividades como escolas de gastronomia, espaços de coworking e assim por diante. Também é importante que ocorram feiras e eventos com frequência no local.
Lira usa como exemplo o projeto do Parque da Gare, de Passo Fundo, antiga estação férrea reformada com financiamento internacional. O bom movimento no local foi garantido com uma medida simples: assegurando a realização da Feira do Produtor, que ocorre três vezes por semana no espaço.
No GZH Conversa de fevereiro, o repórter Caue Fonseca e o colunista Paulo Germano debateram com assinantes convidados o futuro do Centro Histórico. Confira a íntegra do bate-papo:
Em curso
Confira algumas medidas já em andamento referente ao Centro Histórico de Porto Alegre
Viaduto
O Viaduto da Conceição passa por limpeza, reparos e pintura na ordem de R$ 800 mil a serem concluídos em abril. Faz parte de uma das ações para embelezar os acessos à cidade. Ao final, estão previstos grafites nos pilares e adoção dos canteiros pela iniciativa privada. O próximo local restaurado será a passarela da Estação Rodoviária, com orçamento de R$ 300 mil.
Editais
A secretaria de Parcerias Estratégicas já lançou editais para reformas da Fonte Talavera, das calçadas e da escadaria do Paço Municipal. Também será lançado edital de pintura.
Na fila, estão as praças da Alfândega e da Matriz, de reforma seguida de adoção, e a Praça Otávio Rocha, para concessão de espaço comercial (onde havia um café, hoje fechado). A prefeitura estuda um embelezamento do Muro da Mauá, que poderá ser ajardinado, e fazer painéis artísticos nas paredes cegas (empenas) de prédios públicos.
Iluminação
Parte da PPP que concedeu a iluminação à iniciativa privada, o Centro Histórico terá a iluminação dos seus monumentos e prédios históricos toda renovada a partir de abril de 2022 pela concessionária IP Sul.
Serão 34 prédios históricos renovados divididos em quatro circuitos.
Até outubro do ano que vem, pontos como Mercado Público, Casa de Cultura Mario Quintana e Usina do Gasômetro já estarão com as luzes renovadas.