Uma análise cuidadosa das propostas do prefeito eleito Sebastião Melo mostra duas características principais. Primeiramente, acenos para setores políticos que não costumavam ser tão próximos dele. O outro ponto é seu conhecimento de projetos em andamento na administração pública ou em discussão na cidade.
No primeiro grupo, se enquadra a regulamentação da ainda abstrata Lei de Liberdade Econômica – de autoria do seu vice, Ricardo Gomes – e a abertura ao modelo de escolas cívico-militares, um aceno ao eleitorado bolsonarista. No segundo, Melo demonstra que está pronto para dar continuidade a propostas que já circulavam pelo Paço Municipal, como a venda de imóveis do município para investimentos no Centro e a parceria com a rede hoteleira para reaquecer a economia. Para implementá-las, Melo sabe que parte do caminho já está traçado.
Nesta reportagem, GZH analisa sete propostas e bandeiras do candidato e as submete a um primeiro teste de realidade. Há, ainda, propostas de fácil aceitação e entendimento ao eleitorado, mas de difícil execução, como o cancelamento dos aumentos do IPTU e a ampliação de linhas noturnas de ônibus.
Fontes consultadas: secretarias municipais de Desenvolvimento Econômico, da Fazenda, de Infraestrutura e Mobilidade Urbana, de Saúde, Associação de Transporte de Passageiros de Porto Alegre, Sindicato de Hospedagem e Alimentação de POA e Região, Centro Estadual de Vigilância em Saúde, EEEM Carlos Drummond de Andrade e Ministério da Educação.
Cancelamento dos aumentos do IPTU
Vou propor, dia 1º ou 2 de janeiro, se for eleito, o cancelamento dos aumentos (do IPTU), tanto da área comercial como da residencial.
Relembre
De todas as propostas, o cancelamento dos aumentos do IPTU a partir de 2022 é a que mais encontra resistência de especialistas em finanças públicas, seja pelo impacto ou pela viabilidade da implementação. O novo cálculo do imposto exigiu negociações e ajustes por três anos antes de ser aprovado na Câmara Municipal, e tudo leva a crer que mexê-lo – mesmo que para onerar menos o contribuinte – vá exigir esforço.
O primeiro empecilho é de ordem prática: diferentemente de impostos como o ICMS, cuja alíquota é decidida de forma relativamente arbitrária, o IPTU é calculado conforme a avaliação da planta da cidade. Para baixá-lo, há dois caminhos, ambos por meio de projeto de lei: reduzir as alíquotas (que era única, de 0,85%, e passou a ter oito graduações na nova lei) ou reavaliar os imóveis para baixo novamente.
Em 2019, ela foi atualizada pela primeira vez desde 1992. O segundo ponto, o que mais preocupa os especialistas, diz respeito ao impacto financeiro no já combalido caixa da prefeitura. Se conseguir suspender os aumentos previstos para a partir de 2022, Melo abdicaria de R$ 554 milhões de arrecadação, sendo R$ 50,8 milhões já no segundo ano de governo.
Por fim, há o questionamento sobre quem seria beneficiado. Os aumentos foram calculados com base na nova avaliação da planta de imóveis. Em tese, os imóveis que mais tiveram o valor do imposto aumentado foram os que usufruíam de tarifa defasada nas últimas décadas. Os que já tinham a tarifa próxima ao considerado justo pela prefeitura já tiveram o aumento integral em 2020 ou 2021, limitados aos tetos de 30% e 20%. Ou seja: cancelar aumentos a partir de 2022 beneficiaria só donos de imóveis que tiveram IPTU aumentado em mais de 50%.
Convidado pelo atual prefeito a encaminhar mudanças no IPTU já em 2020, Melo recusou. Declarou que isso será articulado com a Câmara em 2021, na qual contará com base numerosa para eventuais mudanças. Melo ainda não esclareceu como as faria.
Venda de imóveis para revitalizar o Centro
Eu vou vender todos os imóveis, que hoje são mais de 3 mil, e vou botar um fundo para revitalizar o centro de Porto Alegre.
Relembre
A estafa das intermináveis obras da Copa do Mundo de 2014 e o momento econômico desfavorável fizeram com que as campanhas das eleições de 2020 fossem modestas ao prometer obras públicas. Sebastião Melo não foi diferente, e fez poucas promessas que envolvam o tema.
Porém, o candidato prometeu melhorias em duas áreas: as entradas da Capital pelas avenidas Farrapos e Castelo Branco, e no Centro Histórico. O financiamento, segundo ele, viria da venda de “mais de 3 mil imóveis” que pertencem ao município.
Ao menos legalmente, a medida está bem pavimentada. Em 2019, a Câmara aprovou projeto de lei que autoriza a prefeitura a vender imóveis por meio de leilão, além de fazer permutas de imóveis públicos ou particulares e permutas por área construída (na prática, trocar imóveis por obras públicas). A lei prevê, inclusive, que recursos sejam destinados ao Fundo Especial Pró-Mobilidade, que tem entre finalidades qualificar equipamentos públicos. No mesmo ano, a prefeitura fez inventário de quais imóveis seus estavam ocupados irregularmente.
Em fevereiro passado, a prefeitura firmou contrato com a Caixa para avaliar 60 imóveis que deverão ter esse destino. O sucesso da medida depende de fator óbvio: que imóveis tenham compradores interessados.
Até lá, o mais provável é que o Centro Histórico seja revitalizado com verbas já asseguradas do Banco de Desenvolvimento da América Latina, a mesma instituição que financiou a revitalização dos dois primeiros trechos da orla do Guaíba.
A pandemia adiou o início das obras de R$ 32,3 milhões que deverão revitalizar o calçadão da Rua dos Andradas, um trecho da Avenida Borges de Medeiros (entre a Avenida Salgado Filho e a Praça Montevideo) e o chamado “quadrilátero central”: os 30 mil metros quadrados que abrangem as ruas General Vitorino, Otávio Rocha, Voluntários da Pátria, Marechal Floriano, Vigário José Inácio e Dr. Flores.
Descontos em hotéis em dias de jogos de futebol
Vou chamar Grêmio e Inter e hoteleiros e restaurantes e, em dias que tiver jogo da dupla Gre-Nal, tem de dar 60% de desconto nos hotéis. Em vez das pessoas voltarem ao Interior, tem de ficar aqui, comer aqui, gastar aqui.
A ideia foi lançada pelo então candidato Melo ao sugerir que a retomada da economia pós-pandemia vai exigir colaboração mútua e ideias ousadas para que Porto Alegre cresça com mais rapidez. O incentivo ao turismo poderia ser uma ferramenta.
A iniciativa conversa com a intenção do atual governo de fomentar atrativos que façam com que o turista de passagem pela Capital fique ao menos um dia e uma noite na cidade. A roda gigante, prevista no vindouro edital de concessão do Trecho 2 da Orla, foi uma das medidas com tal objetivo.
A sugestão de Melo é parceria entre a rede hoteleira e a dupla Gre-Nal para conceder descontos a quem vem à cidade em razão do futebol. Hoje, a maior parte dos torcedores do Interior encara a estrada de volta mesmo quando os jogos são após 21h. Levando em conta uma temporada em que as duas equipes avancem às fases finais das competições nacionais, como em 2019, são cerca de 40 jogos na Capital em noites de dias úteis.
De acordo com o Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região (Sindha), a ideia não é nova e tem apoio do setor. Circula há pelos menos cinco anos e duas gestões municipais, motivada por estatística anterior à pandemia: apenas 10% da ocupação média da rede porto-alegrense é composta de turistas. A parceria já vislumbrada em outras oportunidades envolveria restaurante e comércio, para proporcionar descontos a quem circulasse pela Capital nos dias dos jogos. Porém, sempre despertou mais simpatia do que medidas concretas.
Segundo o Sindha, a prefeitura poderia colaborar de duas formas: capitaneando o processo e fazendo publicidade da iniciativa no Interior e fora do Estado. A dupla, por sua vez, poderia auxiliar cedendo espaços de mídia nos estádios e nas redes de Grêmio e Inter para divulgar a parceria. Além disso, poderia realizar levantamentos entre sócios do Interior para esmiuçar o potencial da iniciativa.
Ônibus operando até a madrugada
Vamos garantir que as pessoas possam voltar para casa ao fim de cada jornada de trabalho. Vamos colocar linhas noturnas que vão funcionar até o início da madrugada.
Desde o início da campanha, Melo colocou o transporte público como parte do Plano Emergencial de Recuperação Econômica e Social de Porto Alegre. A ideia é que, para correr atrás dos prejuízos da pandemia, bares, restaurantes e comércio operem em horários ampliados. Para viabilizar isso, promete ônibus até as 2h.
Segundo a Associação dos Transportadores de Passageiros, a viabilização da ideia passa por proposta menos chamativa ao eleitor: a repactuação do edital do transporte público, de 2015.
A justificativa é de que os contratos firmados entre concessionárias e prefeitura previam queda muito sensível no número de passageiros por ano. Como a queda se acentuou, as empresas têm dificuldade de ampliar serviços, especialmente os deficitários, como o ônibus noturno.
Como contrapartida de socorro de R$ 39 milhões da prefeitura em razão da pandemia, as concessionárias entregarão à prefeitura até o final do mês um plano de reestruturação. A ideia é de que a remuneração da prefeitura seja mais baseada em quilômetros rodados: a partir daí, é ela quem decide em que horários os ônibus devem funcionar. Mas também seria ela quem passaria a pagar a conta quando a operação superar a arrecadação em passagens.
A ATP argumenta ainda que dividir a conta com o Executivo é uma forma de incentivá-lo a buscar soluções inovadoras para diminuir o custo da operação. Uma delas seria a bilhetagem 100% eletrônica a partir de determinado horário, dispensando o cobrador e economizando 16% do custo. A associação aposta que o pix, ao permitir pagamentos por QR Codes, fará com que o passageiro possa pagar o bilhete antes mesmo de entrar no ônibus. O governo atual, todavia, fracassou ao tentar aprovar projeto de lei na Câmara Municipal que não extinguiria, mas abriria a possibilidade de dispensa do cobrador em determinados horários.
Implementação das escolas cívico-militares
A escola cívico-militar traz qualidade de ensino que se destaca no país. Me comprometi com essa pauta. Todas as que for possível, vamos colocar em Porto Alegre.
Confira
Embora a inclusão da proposta tenha sido creditada ao PRTB, partido do vice-presidente Hamilton Mourão, o prefeito eleito argumenta que o desejo de ter mais escolas cívico-militares em Porto Alegre veio do projeto Vozes da Cidade, série de debates de propostas coordenados pelo ex-prefeito José Fogaça.
O objetivo do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, apresentado pelo então ministro da Educação Abraham Weintraub, é instalar 216 escolas do modelo no país até 2023, privilegiando instituições que necessitam melhorar índices de qualidade de ensino.
Em 2020, o programa recebeu verba de R$ 1 milhão para cada uma das 54 escolas implementadas como piloto. O dinheiro serviria para reformas dos colégios e pagamento de pessoal: militares da reserva, que receberiam remuneração de 30% do seu soldo antes da aposentaria para participar do cotidiano escolar.
Cinco delas ficam no Rio Grande do Sul: em Alvorada, Caxias do Sul, Alegrete, Bagé e Uruguaiana. Na Escola Estadual de Ensino Médio Carlos Drummond de Andrade, de Alvorada, a implementação enfrenta entraves com a pandemia. Por ora, a escola trabalha com trâmites burocráticos. Conforme a direção, o principal interesse em participar do programa não está relacionado a patriotismo, disciplina ou mesmo à qualidade do ensino, mas à segurança. Furtos ocorrem entre quatro e cinco vezes por ano e os alunos correm risco de assalto nos arredores. O projeto pedagógico, conforme a direção, não deve sofrer influência.
Não há impeditivo para que Porto Alegre se candidate a receber escolas no modelo com recursos federal, mas dificilmente o número de instituições contempladas seria determinante para impactar na melhora da rede – hoje, nenhuma escola municipal está acima da meta do Ideb. E, mesmo que essas escolas venham a ter melhora considerável do ensino, seria difícil aferir se isso se deve ao modelo ou ao investimento em reformas e recursos humanos – militares ou não – que os acompanharia.
Regulamentação da Lei de Liberdade Econômica
Vamos regulamentar a Lei de Liberdade Econômica em Porto Alegre, simplificando procedimentos e diminuindo burocracia. Os pequenos negócios, de baixo risco, ficarão dispensados de qualquer tipo de licença.
Confira
Uma das propostas favoritas da ala liberal da coligação de Sebastião Melo – representada sobretudo na figura do vice-prefeito eleito, o vereador Ricardo Gomes (DEM) – é a regulamentação da Lei de Liberdade Econômica, de autoria do próprio Gomes em parceria com vereadores Felipe Camozzato (Novo) e Mendes Ribeiro (DEM). Um dos objetivos seria a dispensa de alvará para negócios de baixo risco.
A Lei de Liberdade Econômica, todavia, é mais uma declaração de princípios do que dispositivo legal clássico. Determina no segundo artigo, por exemplo, que todo cidadão tem o direito de “desenvolver, para sustento próprio ou de sua família, atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de atos públicos de liberação da atividade econômica”. O desafio de Melo é elaborar série de medidas práticas que reflitam esses princípios aprovados pelos vereadores em 2019.
A atual administração não excluiu a necessidade de alvará, mas teve méritos na desburocratização. Segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Econômico – pasta que chegou a ser ocupada por Gomes, no início da gestão de Nelson Marchezan –, o tempo médio para a emissão de alvará caiu de 41 dias para seis dias a partir da implementação da Sala do Empreendedor.
O número de alvarás concedidos pela prefeitura em 2019, foi de 18.378, 22% superior a 2018.
No final de 2019, como parte do Pacto Alegre – projeto multisetorial para tornar Porto Alegre mais inovadora – a prefeitura promoveu concurso para premiar medidas de desburocratização. Os vencedores desenvolveram plataforma capaz de emitir alvarás para atividade de baixo risco em 10 minutos. O alvará, todavia, não é dispensado para que haja monitoramento e fiscalização pela prefeitura das atividades.
Consórcio metropolitano para compra da vacina
Precisamos estar preparados para, caso não tenhamos resposta rápida e positiva do Ministério da Saúde, criar um fundo metropolitano para adquirir a vacina diretamente, assim que for liberada pela Anvisa.
Leia
Desejo número 1 de milhares de porto-alegrenses, a vacina contra a covid-19 não passou batido pela campanha. Sebastião Melo sempre reforçou a convicção de que o governo federal compraria a vacina e a distribuiria. Se não o fizesse, o então candidato buscaria compor um consórcio com municípios da região para negociar a compra de doses.
Conforme especialistas em imunizações via sistema público, o consórcio seria boa alternativa em condições normais. Porém, em primeiro momento, a intenção de compra esbarraria, sobretudo, na falta de insumos para fabricação da vacina para clientes que não sejam os governos de cada país.
Ainda assim, conforme apuração da colunista de GZH Rosane de Oliveira nesta sexta-feira, por meio da Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal), prefeitos estão alinhavando um acordo com o Instituto Butantan para a compra da CoronaVac, vacina do instituto em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. Na próxima quinta-feira, uma comitiva de prefeitos será recebida no Butantan, em São Paulo, para tratar do tema. Porto Alegre é uma das cidades que integra a Granpal.
No cenário nacional, o Ministério da Saúde divulgou nos últimos dias o esboço de um plano que abrange a compra de 100 milhões de doses e imunização dividida por quatro grupos em ordem de prioridade. E o Congresso reservou R$ 2 bilhões para a primeira compra.
Mas pouco foi abordado, na campanha, algo que especialistas em saúde julgam ser a parte mais decisiva das prefeituras no processo de imunização: a organização da distribuição da vacina, com instalações predefinidas e grupos prioritários cadastrados, para que a imunização seja rápida e eficiente.