Embora a pandemia esteja no cotidiano do brasileiro desde março, a vacina contra a covid-19 entrou com atraso nas campanhas municipais. Em Porto Alegre, por exemplo, nos planos de governo registrados pelos candidatos no Tribunal Superior Eleitoral, o termo "vacina" era mais mencionado em propostas referentes a animais de rua do que no contexto da pandemia.
Entre os 13 candidatos, Fernanda Melchionna (PSOL), Gustavo Paim (PP), José Fortunati (PTB), Juliana Brizola (PDT) e Valter Nagelstein (PSD) são os que abordam nos seus planos especificamente a vacina da covid-19. Já Montserrat Martins (PV), médico de formação, propõe um "Programa de vacinações e estratégias de saúde pública para doenças endêmicas e epidêmicas".
Porém, quando os programas eleitorais começaram, os principais candidatos inseriram o tema em suas campanhas prometendo, com diferentes palavras, assegurar a imunização de todos os porto-alegrenses. GZH solicitou aos candidatos à prefeitura da Capital que enviassem um resumo de suas propostas sobre o assunto (ver abaixo) e discutiu a viabilidade delas com especialistas.
Embora eles tenham se abstido de avaliações sobre propostas específicas, a opinião geral é de que alguns candidatos usam o amplo desconhecimento da população sobre como funcionam as vacinações para ora prometer o que não podem assegurar, ora prometer o que é a obrigação elementar de qualquer prefeito de qualquer município.
Um aspecto que costuma ser ignorado pelos candidatos, por exemplo, é o planejamento necessário para que se faça uma imunização em massa. Problema que se acentua em um cenário de completa incerteza como o da vacina da covid-19, que sequer existe ainda no mercado e cuja demanda é toda a população do planeta.
— Hoje, toda vacinação em massa exige um planejamento prévio de no mínimo um ano. Se eu quisesse hoje comprar 1,5 milhão de doses de uma vacina que já está no calendário de vacinação, é provável que laboratório algum tivesse insumos disponíveis — exemplifica Tani Ranieri, chefe da Vigilância Epidemiológica do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs).
Tani lembra de um exemplo recente de um município gaúcho que estava tentando ajudar um frigorífico a imunizar todos os seus funcionários da gripe comum. Mesmo se tratando de poucas doses — entre 1 mil e 2 mil — e de uma das vacinas mais produzidas, foi difícil concretizar o negócio pela falta de insumos, já que os laboratórios trabalham por demanda.
Hoje, toda vacinação em massa exige um planejamento prévio de no mínimo um ano. Se eu quisesse hoje comprar 1,5 milhão de doses de uma vacina que já está no calendário de vacinação, é provável que laboratório algum tivesse insumos disponíveis
TANI RANIERI
Chefe da Vigilância Epidemiológica do Cevs
Por isso, os municípios brasileiros se valem do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em que é o Ministério da Saúde quem negocia a aquisição das vacinas — seja diretamente de laboratórios internacionais, por pregões eletrônicos, seja as produzidas no Brasil, de instituições como o paulista Butantan e o carioca Bio-Manguinhos.
A partir daí, elas são distribuídas às regiões de forma estratégica, privilegiando grupos de risco de cada doença e um calendário previamente estabelecido. Portanto, quando um candidato fala em dialogar com o governo federal para assegurar a vacina, fala em algo que seria elementar ou até desnecessário. Já quando fala em adquirir vacinas, fala basicamente em furar uma fila para comprar apressadamente um produto que ele não sabe quanto custa, como deve usar, sua eficácia a médio prazo e quantos outros potenciais compradores existem ou quanto eles estão dispostos a pagar.
Vacinação por conta própria
Não é impossível um munícipio se imunizar por conta própria de uma doença, sem depender do PNI. Foi o que a prefeitura de Farroupilha, na Serra, decidiu fazer em 2013, ao vacinar seus adolescentes de 12 e 13 anos contra o HPV, ao custo de R$ 1,5 milhão. Porém, se tratou de um projeto piloto com acompanhamento do próprio Ministério da Saúde. A boa resposta e os dados da Serra foram alguns dos elementos que fizeram com que, nos anos seguintes, a vacina para o HPV entrasse no PNI para três doses, aplicadas dos nove aos 11 anos.
Se determinadas pessoas tomarem uma vacina que funciona de determinado jeito, a comunidade fica imunizada. Portanto, sair comprando a primeira vacina que for liberada não é necessariamente a estratégia mais inteligente
CRISTINA BONORINO
Professora da UFCSPA
Especialistas alertam ainda que uma eventual corrida de prefeitos em busca de imunizações por conta própria pode criar um cenário desaconselhável em nível nacional, tornando o controle da epidemia mais caro e mais difícil de ser monitorado. Um médico gaúcho com passagem recente pela Secretaria Municipal de Saúde da Capital e pelo Ministério da Saúde dá um exemplo de como a imunização é uma questão de saúde pública sensível.
Em 2018, uma jovem gaúcha fazia residência em Manaus (AM). Na sua infância, o sarampo era combatido por meio da vacina tríplice viral (sarampo, cachumba e rubéola), mas exigiria uma dose de reforço entre os 20 e os 49 anos, que ela nunca tomou. Ela contraiu a doença e, em visita à Capital, se encontrou com um homem e seus dois filhos, que não haviam sido imunizados porque a mãe fazia parte de um movimento antivacina. Mesmo a imunização contra o sarampo tendo atingido 85,2% da população em 2017, essa coincidência infeliz bastou para dar início ao maior surto de sarampo na Capital desde o começo dos anos 2000.
— Então, quando os candidatos prometem sair imunizando por conta própria, às vezes não se dão conta de quão perigoso isso pode ser. Como fica quando Porto Alegre vacinou todo mundo, mas Belo Horizonte, Rio de Janeiro, não? Um deslize nessa estratégia pode colocar tudo a perder — conta o ex-servidor, que não quis se identificar.
Imunologista, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia, Cristina Bonorino entende que todas as propostas dos candidatos sobre a vacina da covid-19 devem ser analisadas pelos eleitores à luz de um mesmo raciocínio:
— Toda estratégia de imunização funciona em comunidade. Cada pessoa é diferente da outra e, portanto, pode ter uma resposta imune diferente. Sobretudo em um cenário de tanta incerteza sobre os efeitos, a durabilidade e tudo mais, você tomar uma dose não significa que ela vai funcionar em você e pronto, está protegido. Significa que se determinadas pessoas tomarem uma vacina que funciona de determinado jeito, a comunidade fica imunizada. Portanto, sair comprando a primeira vacina que for liberada não é necessariamente a estratégia mais inteligente — explica Cristina.
Na opinião da imunologista, mais do que prometer aquisição de doses, os candidatos podem fazer mais no combate à covid-19 cobrando algo mais fundamental que doses:
— Pressionar e trabalhar em torno daquilo que não tem hoje em dia no Brasil: um plano.
O que prometem os candidatos
GZH pediu aos 13 candidatos à prefeitura de Porto Alegre que resumissem, em 500 caracteres, suas propostas em relação à vacina contra a covid-19 (se existissem). Apenas o candidato Luiz Delvair (PCO) não enviou. Veja as respostas:
Fernanda Melchionna (PSOL)
"Prioridade é garantir vacina para imunizar e salvar vidas. Infelizmente, Bolsonaro faz disputa política ideológica com a vida das pessoas. E se não conseguirmos vencer o governo federal, a prefeitura se responsabilizará em conseguir vacinas. Retomaremos a gestão pública da saúde pública revertendo terceirizações do Marchezan, criando a empresa pública da estratégia da saúde da família, garantindo que funcionários do Imesf sigam trabalhando – e ampliando a atenção básica e a saúde preventiva. Ouviremos e governaremos com o Conselho Municipal de Saúde."
Gustavo Paim (PP)
“A vacina contra o coronavírus será prioridade. Tão logo tenhamos o medicamento aprovado pelos órgãos competentes, vamos adquiri-lo com recursos do Fundo Municipal de Saúde e do corte de custeio, em sintonia com o Ministério da Saúde, e colocá-lo à disposição de todos os porto-alegrenses. Faremos uma imunização inteligente, iniciando pelos mais suscetíveis aos males da covid-19, como idosos e pessoas com alguma comorbidade.”
João Derly (Republicanos)
"Primeiro precisamos de uma vacina registrada e com todas as certificações. Espero que o tempo desse anúncio seja o mais curto possível. Segundo, vacina não tem ideologia e não pode ser algo de disputa política. São vidas em jogo e também a economia. Por isso, vamos dialogar com Ministério da Saúde e governo do Estado para garantir a imunização de todos os moradores de Porto Alegre, independente do país de origem da vacina. Os recursos serão garantidos pela gestão e teremos um cronograma de vacinação construído com especialistas, não a partir de uma ideia monocrática."
José Fortunati (PTB)
"Largamos na frente e a nossa coligação já está trabalhando, mesmo antes da eleição, com ações de enfrentamento à covid-19. Já protocolamos na Câmara de Vereadores projeto de lei específico para criação de um fundo para a compra da vacina. Além disso, criamos um grupo de trabalho com especialistas, coordenado pelo candidato a vice, o médico André Cecchini, para planejar ações imediatas, levando em conta fatores como logística, armazenagem, distribuição e o sistema de saúde como um todo."
Juliana Brizola (PDT)
"O principal desafio do próximo gestor será imunizar, com maior rapidez e organização, 100% da população de Porto Alegre, assim que a vacina da covid-19 estiver disponível. É por isso que lançaremos o programa Porto Alegre Vacina. Vamos mapear a cidade e usar os meios de comunicação para divulgar todos os locais que iremos vacinar. Contrataremos profissionais temporários. E não será somente em posto de saúde, faremos um grande mutirão: em praças, bairros, para que, em um curto período de tempo, toda a população porto-alegrense seja imunizada."
Júlio Flores (PSTU)
"Bolsonaro, Leite e Marchezan têm sido irresponsáveis sobre a covid-19, liberando atividades e aulas sem segurança. A polêmica da vacina tem viés eleitoral. Defendemos a vacina obrigatória, como outras que já existem. Recusar-se pode infectar a outros. Sem ainda a garantia de vacinas suficientes, é urgente garantir a produção para todos, logo que se mostre segura. O sistema de saúde deve ser estatizado sob o SUS. Confiscar o lucro dos bilionários que enriquecem na pandemia para financiar a saúde."
Manuela D'Ávila (PCdoB)
"Nossa proposta é negociar com os laboratórios com registro aprovado a compra direta, caso não esteja indicado pelo governo federal a distribuição da vacina via SUS no momento em que ela estiver disponível. É viável um sistema próprio de compras da vacina com recursos que a prefeitura deixou de gastar com a pandemia antes. Foram R$ 150 milhões não utilizados e que ficaram em um fundo. Poderia ter servido para retomar as aulas com mais testes e segurança, mas ficará para uma possível vacinação."
Nelson Marchezan (PSDB)
"Toda e qualquer vacina aplicada no país por meio do SUS está sob gerência do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde. Por isso, há expectativa que a vacina do covid-19 também seja adquirida pelo governo federal. Entretanto, caso exista negativa do Ministério da Saúde sobre a compra da vacina do covid-19, o município irá adquirir por meio de recursos do Funcovid. Já há negociações junto ao Instituto Butantan para aquisição direta."
Montserrat Manrtins (PV)
"Estamos propondo que Porto Alegre busque parceria com o Lacen (Laboratório Central do Estado), que já produziu mais de 50 mil testes para a covid-19. O exemplo nesse sentido vem de São Paulo, que tem utilizado o seu instituto público, o Butantan, para testes e vacinas. Acreditamos que o governo federal deva fornecer a vacina a todo o país, mas Porto Alegre deve estar preparada para fazer a sua parte, se necessário. E a melhor forma de fazer isso é através de convênio com o laboratório do Estado."
Rodrigo Maroni (PROS)
"Minha opinião sobre a vacina é de que os políticos se apropriaram e fizeram uma polêmica para ganhar votos. Não tem saída ainda, não tem vacina ainda. E independente do candidato que se eleger, por óbvio todos porto-alegrenses deverão ser vacinados, bem como todos os brasileiros. Por enquanto não há certeza nem para ambiente científico, menos ainda para qualquer candidato a prefeito prometer. É apenas chute e oportunismo em meio ao desconhecido. A única saída por enquanto é ficar em casa, se puder."
Sebastião Melo (MDB)
"Quem deve oferecer a vacina para a covid-19 é o governo federal, via Programa Nacional de Imunizações, e o papel da prefeitura é preparar a cidade para conseguir vacinar todos que quiserem o mais rapidamente possível. Contudo, precisamos estar preparados para, caso não tenhamos uma resposta rápida e positiva do Ministério da Saúde, criar um fundo metropolitano para adquirir a vacina diretamente, assim que for liberada pela Anvisa."
Valter Nagelstein (PSD)
"A política de vacinação contra a covid-19 será estabelecida em âmbito federal, coordenada pelo Ministério da Saúde. Quem diz que fará uma negociação colateral direta para que Porto Alegre receba doses e garanta a imunização da população à parte dessa coordenação do governo está mentindo. Precisamos estar alinhados com o Ministério da Saúde para que no dia que a vacina seja disponibilizada nossa Capital esteja na lista prioritária, mas com um detalhe: ninguém pode ser obrigado a se vacinar."