Era uma aula de Artes, não tem certeza do ano – estava na sétima, talvez oitava série. A pedido da professora, ele levantou da carteira e cantou uma música que, como todos os garotos da Lomba do Pinheiro, sabia de cor: “Essa porra é um campo minado, quantas vezes eu pensei em me jogar daqui?”.
Mas não conseguiu ir além do primeiro verso de Fórmula Mágica da Paz, do Racionais MC’s. A professora achava aquilo “coisa de maloqueiro”.
– A mulher se indignou. Me tirou da sala, me arrancou pelo braço – lembra José Falero, 34 anos, uma das maiores revelações da literatura periférica do Brasil.
Enxergar na escola um lugar inóspito colaborou para que Falero largasse os estudos durante o Ensino Médio, mas o episódio não tirou o gosto pelo rap e pelas ideias de Mano Brown. Eles estão presentes nos seus textos, regidos por questões como a violência, a exclusão e a pobreza.
O porto-alegrense conquistou o cenário da literatura nacional no fim do ano passado com o lançamento de Os Supridores (Editora Todavia), depois de trabalhar como porteiro, servente de obras e em supermercados.
Recebeu críticas positivas em jornais e elogios de autores como Bernardo Carvalho, que assina o texto da contracapa do livro. “À vontade entre a norma culta e a gíria das vilas na periferia de Porto Alegre, como quem transita com destreza e naturalidade entre um clássico picaresco e os filmes de Tarantino, José Falero escreveu um romance único, cômico, sensacional e eletrizante”.
Uma façanha improvável para quem foi ler o primeiro livro da vida pelos 20 anos, por insistência da irmã. José Carlos da Silva Junior (Falero é um pseudônimo em homenagem à mãe, Rita Helena Falero) achava impossível aquele monte de palavras estáticas no papel competir com os recursos em imagem e som dos filmes ou com o videogame, que ainda dá ao jogador a possibilidade de comandar a história. Decidiu ler só um para provar que a irmã estava errada, que ler era mesmo um saco.
– Peguei um livro emprestado do melhor amigo, Besta-Fera era o nome, sobre lobisomens. Me senti dentro da história. A imersão na história de um livro é muito particular – conta.
Foi o que precisou para virar um leitor compulsivo. Falero zerou o que tinha na estante de livros da sua casa, que parece ter se materializado naquele instante, porque até então não havia reparado na sua existência. Durante a infância, ninguém ao seu redor tinha o hábito da leitura.
Como não tinha dinheiro para comprar o que queria, acabaria lendo o que caía na sua mão. Isso incluía livros didáticos de geografia, história, matemática e até bula de remédio.
– Eu gostava do ato de ler as palavras, do exercício da leitura. Isso me abriu a cabeça: passei a vida achando que era uma bosta ler. Então o que mais eu posso experimentar, que está disponível?
Falero se arriscou como desenhista e músico, aprendeu a tocar cavaquinho, banjo, violão e guitarra. Mas se encontrou mesmo como escritor. Escreveu seus três livros enquanto cursava Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Colégio de Aplicação da UFRGS – pegou o diploma em julho deste ano.
O último livro já começou a ser vendido em sites e livrarias. Mas em que Mundo Tu Vive? (Editora Todavia) reúne crônicas publicadas originalmente na revista digital Parêntese. O evento de lançamento está previsto para novembro.
– Essas crônicas não foram pensadas em conjunto, mas têm em comum o meu olhar para o mundo. E é daqui da periferia que eu olho para o mundo – antecipa.
DOIS MUNDOS EM UMA CIDADE
Primeira obra de Falero, o livro de contos Vila Sapo foi lançado há dois anos. O autor levou exemplares para o EJA a fim de oferecer a colegas e professores, e um deles deu para Luís Augusto Fischer, escritor e docente da UFRGS.
Fischer foi um dos responsáveis por divulgar o nome de Falero. Reconheceu nele um domínio do meio expressivo, com suingue e uma troca consciente de registro de linguagem, “oferecendo ao leitor a intimidade e o estranhamento com o que vai relatado”.
Falero faz ressoar a voz periférica e negra, diz Fischer, mas não só isso:
– Em sua pequena obra já se vê mais do que o mero eco: ali está um solo, um som que protagoniza. Um som que tem tudo para ir muito mais longe ainda.
Com seis contos, Vila Sapo leva o nome da comunidade onde vive escritor — dono de um cavanhaque cheio e estilo que com frequência inclui boné e camiseta do Grêmio. Ele cresceu ali na Rua Guaíba, em uma casa minúscula feito de retalhos de madeira. Nem banheiro tinha: a privada era dividida entre os moradores de quatro casas da vizinhança.
Saiu apenas uma vez da Lomba do Pinheiro quando criança. Morou no prédio em que o pai trabalhava como zelador no bairro Cidade Baixa. Não se sentia exatamente em casa ali. Numa das regiões mais movimentadas da cidade, morando em apartamento, não tinha a liberdade de correr solto como fazia na vila na Zona Leste.
Além disso, não conseguiu fazer amigos.
– Ali eu era o filho do zelador e da faxineira. Eu não era do mesmo mundo que aquelas crianças.
Mas para uma coisa a passagem pela Cidade Baixa serviu: ele pôde identificar as diferentes realidades dentro de um mesmo município. Conheceu um lado de Porto Alegre que tem infraestrutura, ruas asfaltadas, sem esgoto correndo a céu aberto e tanta violência. E com cultura – foi ao teatro, ao cinema, a desfiles de escola de samba.
– Fico pensando em como foi importante ter esse contraste, de chegar lá e dizer “porra, há uma cidade nova, com possibilidades totalmente diferentes do que eu tinha aqui” – diz, complementando com uma referência ao sociólogo e filósofo Henri Lefebvre:
– Tem um cara, um francês, que escreveu sobre isso. Não vou me atrever a falar o nome dele aqui. É sobre o direito do indivíduo à cidade. Ele tem direito aos pontos de cultura e de lazer. Passar a vida sem conhecer outras possibilidades da cidade, isso é foda.
Em sua pequena obra já se vê mais do que o mero eco: ali está um solo, um som que protagoniza. Um som que tem tudo para ir muito mais longe ainda
AUGUSTO FISCHER
Escritor e professor universitário
Falero pensa nos amigos da Lomba do Pinheiro ao falar sobre o direito à cidade, conceito que garante a todos, incluindo minorias sociais, participar de processos de produção e fruição do espaço urbano. Observa que ter esse acesso “mexe com a subjetividade das pessoas”.
– Como é difícil para uma pessoa pensar de maneira mais ampla daqui, a perspectiva de vida é limitada. Porque tu vai pro Centro, trabalha, volta cansado e vai dormir. Acorda, vai pro Centro, trabalha, volta cansado e vai dormir.
Dona Rita, 59 anos, demorou a entender a revolta do filho. O caçula dificilmente parava em emprego, pedia as contas sempre que algo desagradava. Ela se preocupava em um dia não estar mais ali para ele, temia que o jovem não conseguisse se sustentar.
– Não é que ele não fosse trabalhador, mas o problema do José era que ele não aceitava o mundo como se apresentava, com todas as injustiças, diferenças sociais. Ele achava o fim da picada o cidadão chegar em casa tão cansado que não consegue nem comer, quando tem o que comer. Eu custei a entender, e custei para concordar com ele – afirma Rita, acrescentando:
– Aprendi desde cedo a baixar a cabeça e achava que ele tinha que fazer o mesmo. Mas meus filhos me mostraram que a gente também tem nosso espaço, a gente é pobre mas não é tapete.
O primeiro serviço de Falero foi como servente de obras, ainda adolescente. Trabalhou várias vezes em obras desde então, aplicando gesso no teto de casas bacanas. Também já trabalhou em bar e, no Asun, no Zaffari e no Nacional, foi supridor, como se chama o funcionário que abastece as prateleiras dos mercados.
Aprendi desde cedo a baixar a cabeça e achava que ele tinha que fazer o mesmo. Mas meus filhos me mostraram que a gente tem nosso espaço, a gente é pobre mas não é tapete
RITA HELENA FALERO
Mãe de José Falero
Isso explica os personagens do segundo livro, primeira narrativa longa. Os Supridores se passa em um supermercado da região central de Porto Alegre, onde dois jovens que desempenham a mesma função de Falero decidem entrar para o tráfico. Não é uma obra autobiográfica, mas o autor não nega que enxerga muito de si nos personagens.
– Vou dizer que já pensei em muita coisa. Uma pá de gente eu vi ir por esse caminho, mesmo gente que era trabalhadora e chutou o balde – emenda.
Tem uma história que ilustra esse sentimento, da época em que trabalhava no supermercado do Rua da Praia Shopping. Era dia de pagamento, quando ele se permitia alguns luxos. Comprou iogurte e bolacha recheada antes de ir para a parada e pegou lotação em vez do ônibus de cada dia.
Estava no fundo do veículo comendo seu lanche, faceiro, quando subiu um amigo. Ele sentou no assento ao lado, botou a mão no bolso e tirou um bolo de dinheiro. Levava R$ 3 mil, da venda de um carro roubado. Até a próxima semana, disse, ia “fazer outra mão”.
– Eu ralando o mês inteiro por 700 pila, e o cara tirando 3 mil em uma semana. Aquilo estragou meu dia – comenta Falero, para recitar na sequência um verso de rap: “Eu sei, você sabe o que é frustração, máquina de fazer vilão”.
"Eu sei, você sabe o que é frustração, máquina de fazer vilão"
Essa é mais uma letra do Racionais MC’s. À medida que os anos passaram, Falero foi criando repertório para compreender melhor o que dizem as músicas do grupo paulista, viu que várias reflexões do grupo “batem fundo nas inquietações que as pessoas da quebrada têm”.
Outro momento que fez lembrar e uma letra do Racionais foi o enterro de um primo, executado ali na Lomba. A música relata a dor de um cara que perde um amigo com quatro tiros do pescoço para cima e se vê no cemitério refletindo sobre sua realidade:
“Dois de novembro era Finados. Eu parei em frente ao São Luis do outro lado; E durante uma meia hora olhei um por um. E o que todas as senhoras tinham em comum?A roupa humilde, a pele escura;O rosto abatido pela vida dura; Colocando flores sobre a sepultura”.
Imaginar a sua mãe nessa situação emociona Falero. Fica claro para quem conhece o escritor que dona Rita é a coisa mais importante da sua vida – ele perdeu o pai ainda na infância, por complicações da diabetes e do HIV.
Rita é sua grande apoiadora, leu os capítulos dos livros antes mesmo da publicação. Mãe e filho moram juntos em uma casa de alvenaria, com dois quartos, sala conjugada com cozinha, no mesmo terreno onde Falero cresceu. Foi construída nos últimos meses com a ajuda de quem curte o trabalho do escritor.
A casinha antiga estava em péssimas condições, com o forro caindo, tinha até buraco no chão. Falero criou uma vaquinha na internet e alcançou o valor que precisava no primeiro dia.
– Muita gente ajudou, do país inteiro. Eu não queria abusar e fechei a vaquinha depois de um dia, dizendo que, se precisasse, abriria de novo. Quase acabando a obra, faltou um dinheiro e abri por mais um dia – explica.
A casa é simples, mas transpira capricho nos detalhes. Os móveis também são novos, e Falero quis fazer o teto rebaixado com gesso.
– Fiz muito isso aí, chegou a vez de eu ter – dispara, rindo.
Rita nunca imaginou que fosse possível ganhar uma casa assim. Esperava uma de madeira “mais ajeitadinha”, achou que o filho estava “sonhando alto demais”. Falero ajudou em uma e outra coisa da obra, mas não tanto quanto gostaria.
Faz um ano que ele vive da literatura, escrevendo e participando de eventos literários. Já palestrou para gente de Minas Gerais, de São Paulo, do Rio de Janeiro. E ali da Lomba também.
Antes da pandemia, visitou a escola municipal onde estudou, a mesma em que foi expulso da aula por cantar Racionais. Ficou impressionado com o trabalho de fomento à leitura que existe lá hoje. Também se surpreendeu com o nível das perguntas e a quantidade de referências que a gurizada tem.
É possível que tenha conhecido ali a próxima geração de escritores da Lomba do Pinheiro. E, mesmo que os livros dele se esgotem nas livrarias de todo o país, ele quer estar ali para ver isso acontecer.
Quer fazer Enem para cursar Letras, mas não tem objetivo nenhum de sair da Vila Sapo. Se tivesse avançado uns versos no rap na aula de Artes, teria chegado à parte que diz:
“Minha área é tudo o que eu tenho; A minha vida é aqui e eu não preciso sair. É muito fácil fugir mas eu não vou; Não vou trair quem eu fui, quem eu sou”.