A literatura marginal, termo usado pelos escritores Ferréz e Paulo Lins no início nos anos 2000 para se referir à arte produzida nas periferias das grandes metrópoles, ganha mais uma notória obra intitulada Os Supridores, escrita pelo gaúcho José Falero, lançada em dezembro pela editora Todavia.
Se Ferréz apresentou em Capão Pecado, livro publicado em 2000, o desassossego, o desemprego e a criminalidade vividos por personagens de Capão Redondo, região onde morava na zona sul de São Paulo; e Paulo Lins trouxe em Cidade de Deus, lançado em 1997, um retrato das brutalidades da vida nas favelas do Rio de Janeiro, Falero apresenta em seu novo livro um grupo liderado por Pedro e Marques, os dois funcionários de uma rede de supermercados na função que dá título ao livro, e que decidem criar uma organização para traficar maconha. A ação aqui se passa nos bairros periféricos de Porto Alegre, como Vila Viçosa e Vila Nova São Carlos, em um período demarcado constantemente na escrita do autor como uma espécie de diário, que vai do final de 2009 a meados de 2011.
O quarto capítulo do livro, intitulado Mestre e Discípulo, é onde se dá o diálogo entre Pedro e Marques, em que o primeiro apresenta para o amigo e parceiro de trabalho no supermercado a ideia de juntos criarem uma organização de tráfico de maconha, pois, na região onde vivem, o tráfico estabelecido se dá apenas com a venda de cocaína e crack. Ele expõe de maneira explicitamente marxista o pensamento de se tornar traficante de maconha para reverter sua “patética vida de cidadão trabalhador”. O capítulo é como uma aula explícita e divertida a respeito da luta de classes.
Há nesses dois personagens o desejo de mudança social e a crença de que o plano que estão tramando é o único que poderá fazer com que, de fato, ganhem dinheiro suficiente para melhorar a qualidade de suas vidas. Nesse sentido, existe uma aproximação com personagens construídos pelo dramaturgo santista Plínio Marcos e que, não por acaso, recebeu o estigma de marginal. Tonho e Paco, personagens da peça Dois Perdidos numa Noite Suja, travam diálogos curtos em uma única noite em busca de uma mudança de vida que será solucionada por um par de sapatos. Se em Dois Perdidos... os personagens vivem um dilema parecido com o dos apresentados por Falero, os mesmos não apresentam o aprofundamento de ideias políticas de Pedro, que constrói longos discursos convincentes, embasados em Marx.
A reviravolta
O desenrolar do livro se dá com o crescimento do empreendimento do tráfico, o que faz com que novas pessoas façam parte da organização, formando uma quadrilha de cinco integrantes que, no período de um ano, se veem estruturados financeiramente.
Quando percebem que já não podem mais seguir nesse caminho, é mais uma vez Pedro quem esboça a necessidade de se desvincular da organização, pois acredita que já dispõe de um aparato financeiro suficiente para investir em negócio menos arriscado. Mas, no momento em que eles caminham para esse intuito, a mãe de um dos personagens sofre um atentado provocado por uma nova organização de traficantes que surge na região e, a partir daí, o grupo dos cinco planeja uma vingança.
O plano — e a noite de ação — que resulta na morte de vários membros do grupo rival, incluindo o mais jovem deles, é uma narrativa bem construída e que, se for transposta para o cinema, é daquelas cenas que nos obrigam a grudar o olho na tela, tamanha a expectativa que o autor consegue criar em quem o acompanha.
José Falero, que já foi servente de pedreiro, supridor de supermercado e auxiliar de cozinha, interessou-se pela leitura a partir de uma provocação de sua irmã, que é atriz e lhe apresentou a obra de Bertolt Brecht. Com isso, ele se descobriu um autodidata competente. E torna-se evidente que o pensamento e a forma de escrever de Brecht influenciaram sua escrita. A narrativa de Os Supridores tem em sua construção não apenas os aspectos sociais tão caros ao dramaturgo alemão, mas convida o leitor a participar da narrativa, não o distanciando da trama.
São pequenos detalhes da linguagem que trazem essa referência, como no último capítulo em que ele chama a atenção do leitor com a frase: “A resposta para a pergunta que o leitor talvez esteja se fazendo é muito simples...”.
E, com isso, conduz a um final dialético, mais uma vez trazendo a presença do leitor: “E se tu, leitor, estiveres lendo isto, très bien. É porque Pedro conseguiu escrever tudo o que desejava”.