Paulo Scott, 54 anos, é uma das principais vozes da literatura brasileira contemporânea. No currículo do escritor porto-alegrense radicado em São Paulo, constam o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional (pelo romance Habitante Irreal, de 2011), o Troféu Associação Paulista de Críticos de Arte (pelos poemas de Mesmo Sem Dinheiro Comprei um Esqueite Novo, 2014) e dois Açorianos (pelos romances O Ano em que Vivi de Literatura, 2015, e Marrom e Amarelo, 2019). Agora, depois de escrever também um livro de contos (Ainda Orangotangos, 2003, adaptado para o cinema por Gustavo Spolidoro) e um espetáculo teatral (Crucial Dois Um, 2006, levado aos palcos por Gilson Vargas), ele se aventura como roteirista de história em quadrinhos. Assina, com o desenhista pelotense Rafael Sica, Meu Mundo Versus Marta, recém lançado pela Companhia das Letras (160 páginas, R$ 84,90).
Não se trata de um salto no escuro, como Scott deixa claro na entrevista a seguir, concedida por e-mail: ele diz ter sido muito impactado por graphic novels europeias na década de 1980, conta de sua proximidade com a cena quadrinista de Porto Alegre e revela ser um leitor antenado com a produção atual.
Por outro lado, Meu Mundo Versus Marta é, sim, um salto no escuro — tanto para Scott e Sica quanto para o leitor. O quadrinho não tem texto (fora algumas pichações, alguns cartazes etc.), o que aumenta o desafio para entender sua trama distópica, ambientada em um futuro incerto e em uma cidade com ares de Pelotas. Por lá, acompanhamos a jornada de um sujeito que trabalha em alguma espécie de laboratório genético e que mantém, em casa, algo parecido com uma biorrobô. Quando circulam por outros cenários, os dois personagens atraem olhares desconfiados ou intimidantes. Um conflito é iminente.
— A HQ tem uma premissa: a inevitável dicotomia entre o indivíduo e o mundo, e o sentimento de humanidade que deve estar presente nas razões, nos julgamentos — conta Scott, dando uma chave de leitura para uma obra que convida à imersão, tanto para apreciar os detalhes da arte de Rafael Sica quanto para depreender significados no labirinto narrativo e as relações com a sociedade brasileira, traços marcantes dos romances do escritor.
Paulo Scott: "O protagonista reage a um sistema de violência e medo"
Você já tinha feito contos, romance, poesia e até teatro. O que te levou aos quadrinhos?
Sempre amei quadrinhos. A estética fundada com a revolução das graphic novels europeias nos anos mil novecentos e oitenta mudou minha vida para sempre. Havia naquele mundo, naquela explosão concertada, uma revolução narrativa que não se encontrava na estética do cinema, da literatura, do teatro — com o surgimento da internet e a revolução por ela causada, aquela posição de, digamos, vanguarda se enfraqueceu um pouco, mas nunca deixou de ser significativa. E sempre andei muito próximo dos quadrinistas e desenhistas gaúchos, da turma da Kamikaze, da DumDum, sou muito influenciado pelos trabalhos deles. Em dois mil e quatro, não tem como não falar, criei com o Fabio Zimbres o projeto Na TáBUA, cartazes A3 em que misturamos textos escritos e desenhos. Por causa do Na TáBUA, fiquei ainda mais próximo desse universo do qual os quadrinistas fazem parte.
Quais são os quadrinistas que você lê e por quê?
Laerte, Fabiane Langona, Power Paola, Fabio Zimbres, Marcelo D'Salete, Adão Iturrusgarai, Guazzelli, Jaca, Santiago, Bastien Vivès e Rafael Sica. Porque jamais são óbvios, jamais pegam atalhos, e, cada um a seu modo, conseguem conter/condensar em uma única narrativa, na simplicidade de uma única narrativa, muitas outras narrativas, muitas outras conclusões e, portanto, possibilidades — isso que, na literatura, é tão precioso.
A primeira coisa que chama atenção em Meu Mundo Versus Marta é que uma história em quadrinhos com roteiro de um escritor não tem diálogos. Nem recordatório, nenhum tipo de narração, nada. As poucas palavras estão em cartazes e cadernos, por exemplo. Por que isso?
No argumento de sete páginas que entreguei ao Rafael Sica, havia muitas rubricas, textos de orientação e muita ação, muito movimento, que, eu sabia, seriam tremendamente amplificados pelo tipo de desenho do Rafael. Escrevi o texto pensando no desenho dele. Não poderia ser diferente.
Em entrevista ao jornalista e tradutor Érico Assis no blog da Companhia das Letras, você disse que, na obra, "há um hermetismo na condução das ações das personagens protagonistas e das secundárias que as cercam — uma dinâmica narrativa que pede, exige, o engajamento criativo de quem queira com ela interagir". Ou seja: além da ausência de texto, a narrativa visual também não é clara. Por que essa opção pelo hermetismo? Seria uma oposição à imagem dos quadrinhos como uma mídia que estabelece uma comunicação rápida e fácil com o leitor?
A narrativa é, no contexto geral, hermética, mas isso não significa que não haja uma coerência, um fio condutor, uma lógica perceptível e sobre a qual a inteligência das leitoras e leitores trabalhará. O que temos na narrativa proposta é o curso de elementos que se conjugam dentro da sistemática autopoiética que o sustenta proporcionando uma primeira impressão mais clara e óbvia que, no entanto, poderá levar, que levará, a outras — outras que virão, inclusive, amparadas pelo alicerce da dúvida, da ambiguidade, da intuição emocional que variará, por certo, de leitura para leitura.
Quem é o protagonista, quem é Marta e de que forma se relacionam com o Brasil de hoje?
Não me parece urgente definir o protagonismo da história para interagir com ela. O que posso dizer é que são três as presenças marcadas pela condição de protagonismo, uma delas é o cenário, o espaço físico, o ambiente social e político no qual a narrativa se desdobra, e onde o Marta, o Marte, e a biorrobô se relacionam num ciclo que se repete. A história, dentro de uma perspectiva distópica, futurista, de opressão, ocorre em um ambiente em que predomina o totalitarismo, o militarismo. Se há relação possível de se estabelecer com a tragédia brasileira atual isso deverá se realizar por meio da leitura, não tanto pela minha intenção, pela intenção do Rafael. O Marta, o Marte, é uma presença não explicada, um agente externo, um corpo estranho, é a possibilidade do medo como obstáculo (contenção?) a um sistema sociopolítico baseado na violência, sobretudo na tensão brutal e permanente da violência psicológica, e baseado no medo. Não é uma equação simples. E a história não é do tipo que apresenta soluções. Penso que a função, se é cabível ter essa pretensão, é a de aglutinar perguntas, nada mais do que isso.
A arte parece ser um escudo para os personagens contra a barbárie. Eles ouvem música, tocam piano, há cartazes de filmes espalhados pelas paredes, o homem desenha... Como preservar a arte nestes tempos de pandemia, em que a prioridade, para muitos, é apenas sobreviver, física e economicamente?
Os truculentos, os protofascistas, os intolerantes e os egoístas odeiam a arte porque a arte transporta um tipo de celebração incômoda que os atinge, porque fere e altera permanentemente os processos do acomodar que lhes é tão conveniente, os processos em que, como se observa hoje no Brasil, levam uma parcela minoritária da população a abraçar a morte e também os discursos que, sem qualquer pudor, descartam a vida e a dignidade humana.
A empresa onde o protagonista trabalha, a suposta loja que "reinaugura hoje" e até o Café Restaurante surgem como estruturas opressoras e/ou alienantes. O protagonista luta contra isso, mas no fim o ciclo recomeça. O sistema de vida e de trabalho em que estamos inseridos tem salvação? Nós temos salvação?
O protagonista reage. Ele é uma presença mais poderosa e destrutiva do que o sistema social apoiado no medo em que se encontra inserido. Por que ele reage? Levado pelas peculiaridades daquele dia ou por outra razão? Não saberemos. O fato é que reage. E o ciclo, tentativa de aproximação entre ele e o mundo da biorrobô, como se nada tivesse acontecido, recomeça.
Rafael Sica: "O Brasil de hoje é ainda mais absurdo e menos palatável"
Nascido em 1979, em Pelotas, Rafael Sica já publicou obras como Ordinário (2011), FIM — Fácil e Ilustrado Manifesto (2014), Fachadas (2017) e Brasil (2020). Seus trabalhos são mudos e ricos em detalhes. Por e-mail, ele falou sobre Meu Mundo Versus Marta.
O roteiro de Meu Mundo Versus Marta tinha sete páginas, que se transformaram em 160 de desenhos, sem texto. Pode contar um pouco sobre como foi o processo de transposição das ideias do Paulo Scott para as páginas? Você já sabia de antemão o que iria detalhar/quebrar em vários microquadros ou isso é um processo intuitivo?
Tive toda a liberdade pra criar em cima do roteiro do Paulo. O que pode parecer muita liberdade na verdade não foi. O Paulo conhece bem o meu trabalho e escreveu já pensando em me chamar pra desenhar. A quebra constante de quadros, como você perguntou, serve pra dar o ritmo que o texto escrito tem. Como diálogos e recordatórios não existem na história, cada pequeno desenho serve como uma palavra-gesto. O gestual, as expressões corporais e os pequenos signos são muito importantes na narrativa e ganham mais peso sem um texto verbalizado.
Claro que ser pelotense deve ter influenciado, mas pode falar sobre a escolha de Pelotas como cenário, ainda que não oficial, da HQ?
Não é exatamente a cidade de Pelotas, não é regional ou referencial. Tem um constante clima de sufocamento, perseguição e repressão na história. Achei bem situar em um cenário de Interior, que sempre esconde esse clima tenso por trás de uma aparente calma e tranquilidade. Pelotas é também o lugar onde desenhei essa história, é onde vivo hoje, é pelas ruas da cidade que ando já conhecendo os buracos das calçadas. Fica mais fácil de desenhar.
Paulo Scott assume que a trama é hermética. Você se sentiu tentado a torná-la mais palatável, já que a história é toda contada apenas pelos desenhos? Qual é sua opinião sobre uma eventual dificuldade de compreensão por parte dos leitores?
Acho que se fosse pra ser uma história mais palatável, o Paulo teria procurado outra pessoa para desenhar. Não me incomodo com uma eventual dificuldade de compreensão, mesmo sendo mais difícil de decifrar um "não entendi" do que um "não gostei". Mas a história não dá mesmo uma única resposta e nem é uma história pra se decifrar em uma primeira leitura. Tem muitas leituras esse livro.
Quem é o protagonista, quem é Marta e de que forma se relacionam com o Brasil de hoje?
Marta é uma tentativa de manter a ordem dos dias, das coisas, das ideias (novas e velhas). É um clima tenso e ao mesmo tempo ingênuo, repressivo e rotineiro. O Brasil de hoje é ainda mais absurdo e menos palatável.