O sonho de Jonatã Nunes Amarante, 33 anos, materializou-se em cem cópias. Poeta do Asfalto — O Tempo É Prioritário reúne versos sobre amor, saudade, solidão, incertezas. Morador de Canoas, na Região Metropolitana, o gari está lançando seu primeiro livro. Com recursos próprios.
Jonatã estampou a capa do caderno DOC de Zero Hora em 1º de fevereiro de 2020. A reportagem detalhou sua rotina como coletor de lixo que corre cerca de 30 quilômetros atrás do caminhão todas as noites, de segunda a sábado, há mais de uma década. A atividade cansativa e insalubre não lhe rouba o orgulho: ele adora o que faz. De madrugada, no celular, Jonatã organiza os pensamentos em poemas, compartilhados em vídeos e aúdios nas redes sociais e entre amigos.
Marcos Rogério Vahl do Amaral, securitário de 51 anos, conhece Jonatã da vizinhança, desde que o jovem era pequeno. Pela internet, descobriu as tentativas aventureiras do iniciante pelas linhas poéticas. Questionou-o:
— Mano, foi você que escreveu?
A resposta positiva os aproximou e aumentou a frequência dos contatos. Apaixonado por livros, Marcos incentiva, tira dúvidas, aconselha. Desejava que o rapaz se encaminhasse bem. “Acompanhei o crescimento literário e também como ser humano do então menino serelepe da quebrada. Que Deus ilumine a sua caminhada na literatura e na vida. Eu tenho fé”, diz um trecho do texto de apresentação que assina na obra.
No início do ano passado, o gari revelou a GZH o desejo de participar de um sarau: declamar em público, espalhar suas ideias. A pandemia que logo se instalou freou a repercussão das aparições na mídia, mas ele não se conformou. Pesquisou no Google sobre as características básicas de um livro: tamanho, número de páginas, preço. Pediu orçamentos, levou sustos — chegaram a lhe apresentar uma estimativa de R$ 5mil para a tiragem inicial.
Fechou negócio com a Filos Editora, de São Paulo, por R$ 1.970, sendo uma entrada de R$ 1 mil e o restante parcelado em quatro vezes. Na singela sessão de lançamento, realizada na Associação dos Moradores do Bairro Rio Branco, perto de casa, no último final de semana, a dívida já estava paga.
— Não tinha poupança. Juntei aqui, juntei ali, apertei lá, apertei aqui — conta.
Nas jornadas recolhendo sacos plásticos pelas ruas dos bairros Niterói e Mathias Velho, Jonatã construiu amizades. A turma do caminhão é saudada pelos residentes, que oferecem água, suco e bate-papo. Em datas festivas, como Páscoa e Natal, os garis costumam ganhar quantias em dinheiro de conhecidos — essas contribuições ajudaram a bancar a edição de Poeta do Asfalto.
Jonatã imprimiu 50 convites e distribuiu para os mais chegados durante os percursos para jogar o lixo na caçamba. Incentivador do projeto literário, o motorista do caminhão aguardava uns instantes a mais para que o colega abordasse os moradores.
— Humildemente, vim fazer um convite. Tô pra lançar meu primeiro livro. Seria uma grande honra contar com a sua presença — repetia o autor.
O gari mora em um puxadinho que ajudou a construir no mesmo terreno onde vivem os pais e os irmãos. A família se emocionou quando a caixa de livros foi entregue dias atrás. Abraçaram-se, tiraram fotos.
— É como ver o nascimento do primeiro filho — compara Jonatã, pai de um menino de 12 anos, fruto de um relacionamento encerrado.
Postado diante da mesa para os autógrafos, o estreante “tremia mais do que vara verde”, na sua descrição. O nervosismo, graceja, não atrapalhou as dedicatórias:
— Minha letra já é feia mesmo!
Foram comercializados 30 exemplares — alguns com pagamento combinado para o mês que vem —, e o escritor se animou para nova encomenda. Deverá receber outra remessa de uma centena de livros nas próximas semanas. O dinheiro que entrou está sendo reinvestido na literatura.
O gari que monta sua biblioteca com títulos descartados em meio a dejetos planeja concluir o Ensino Médio em 2022, na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Para mais adiante, o plano do homem feito que não ia bem em língua portuguesa na escola, preferindo matemática, é cursar Letras. Quem sabe, Pedagogia também. Pretende se aprimorar para falar bonito em palestras para jovens e “mostrar que o mundo ainda tem esperança”.
— Não consegui acreditar em tudo isso. Estou querendo amadurecer a ideia desse livro na cabeça, me dando conta do que está acontecendo, para não me perder lá na frente. Depois quero lançar o segundo, o terceiro e não parar.
Interessados em adquirir Poeta do Asfalto — O Tempo É Prioritário, a R$ 35, podem contatar o autor pelo Instagram, no perfil @nunesdio. Na medida do possível, Jonatã pretende entregar as encomendas pessoalmente, para que os leitores tenham a oportunidade de conhecê-lo. Para fora de Canoas ou Porto Alegre, o escritor pretende enviar os exemplares pelos Correios.
Poemas de Jonatã Nunes
Somos loucos
Somos a antecipação
de nossos sustos
Somos a concretização
de nossos surtos
Somos a abreviação
de nossos sonhos
Somos loucos e injustos
Em um mundo de sábios
Onde o amor é insanidade nas palavras...
Coração
se acalentou
se trancafiou
se calou
entre rotina e doutrina perdido em armadilha
confiando em palavras se
magoando em suas caças
tudo és tão hereditário
confuso em seus inventários
amargurado em insatisfações
sem juízo
aglomerado em raciocínio
sem razões
sentimentos em um calabouço
pensamentos cheios de preocupações
as emoções soam como um eco
os calafrios no peito cheio de arrependimentos
no fim de tudo
onde só um coração
se magoou
Perdido
Como é
aqui estar
e aqui
não se sentir
como é
aqui estar
e ao mesmo tempo
não se encaixar
Perdido sobre uma ilusão
Como é poder
te ver
mas não poder
te tocar
como é poder
te ver
e não poder
te sentir