Bah, foi um baita programa de final de tarde. No entardecer deste sábado (11), cerca de 80 pessoas que fizeram inscrição prévia participaram de um passeio pelo bairro Bom Fim promovido pelo programa Viva Porto Alegre a Pé, da Secretaria Municipal da Cultura (SMC). A proposta é levar pessoas a caminharem por locais de referência da cidade que guardem patrimônios históricos, culturais e arquitetônicos, conduzidas por um orientador que apresenta informações e causos.
No caso do Bom Fim, como não poderia deixar de ser, a temática era a memória boêmia do tradicional bairro nos anos 1960, 70 e 80. Foi a última edição do programa em 2021, coroada com pôr do sol e temperatura agradável que favoreceram o tour.
Megafone à mão, coube ao jornalista e escritor Paulo César Teixeira a orientação do passeio, que começou por um ponto da capital gaúcha que recebeu a alcunha de Esquina Maldita, no encontro da Avenida Osvaldo Aranha com a Rua Sarmento Leite. Ali, em frente à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ficavam bares que reuniam estudantes, jornalistas, artistas, militantes políticos e intelectuais. Um deles era o Copa 70, frequentado pelo personagem ilustre conhecido como Nega Lu.
— Era um negro homossexual que assumiu sua sexualidade numa época em que a sociedade ainda era muito provinciana — relatou Teixeira, que já publicou livros sobre a Esquina Maldita e a Nega Lu.
Os anos 60 e 70 foram marcados pelos hippies, libertação dos costumes, da sexualidade e da mulher. Também eram tempos, naquela região do Bom Fim, de resistência à ditadura militar.
— Era uma época de muitas transformações no mundo. Se isso se refletiu em algum lugar em Porto Alegre, foi aqui na Esquina Maldita — refletiu Teixeira.
A Esquina Maldita começou a entrar em decadência no início dos anos 80, o que foi atribuído pelo orientador do passeio à migração de cursos de Ciências Humanas da UFRGS para o Campus do Vale, próximo da divisa entre Porto Alegre com Viamão. Com isso, a boemia do Bom Fim se mudou para a outra extremidade da Osvaldo Aranha. E foi nessa direção que seguiu o passeio.
Com entusiasmo, o público engatou a caminhada, que perpassou pela cultura roqueira porto-alegrense. Na esquina da Osvaldo Aranha com a Rua Cauduro, cruzou pelo prédio em que morou Nei Lisboa, um dos músicos referência daquele período efervescente. Em seguida, o local em que ficava o Bar Lola, um típico “pé sujo” visitado por intelectuais. Foi ali dentro, contou Teixeira, que o escritor Caio Fernando Abreu criou o conto “O rapaz mais triste do mundo”.
Em cada ponto histórico, o grupo parava para ouvir explicações e observar ambientes. A chegada ao Bar Ocidente, fundado em 1980 por amigos que frequentavam a Esquina Maldita, foi especial.
— O Ocidente tem intensa relação com o rock gaúcho. O primeiro show profissional dos Replicantes foi no Ocidente — narrou o orientador.
Seguindo o corredor da contracultura porto-alegrense, uma parada no famoso Bar do João, que fechou as portas em 2003. E também no Auditório Araújo Vianna, inaugurado em 1965 na área do Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção. Foi naquele palco que o comunicador Julio Fürst, em 1975, promoveu festivais de bandas gaúchas que fizeram história, reunindo grupos como Bandaliera.
Histórias saborosas foram contadas, como o show da banda baiana Camisa de Vênus em 1984 no Araújo Vianna. Terminado o espetáculo, o público, zanzando pela Redenção, deu um jeito de acionar a roda gigante do parquinho infantil. A brincadeira abusada invadiu a madrugada.
Se seguiu uma passada, logo depois, pelo local em que funcionaram os extintos cinemas Baltimore e Bristol, com sessões de filmes cult tarde da noite.
A Lancheria do Parque, fundada em 1982, não poderia faltar no roteiro. Saindo da Osvaldo Aranha, uma voltinha pelas ruas Felipe Camarão e Ramiro Barcelos, com o ponto final no bar Escaler, localizado no centro comercial da Redenção, defronte à Avenida José Bonifácio.
O Escaler funcionou entre 1982 e 2005, marcando época como ponto de encontro para amantes do rock, da contracultura e da discussão política.
— Diziam que isso aqui era um triângulo das bermudas. Quem vinha, se perdia e nunca mais voltava — brincou Teixeira.
Na chegada ao local em que funcionava o bar, quem esperava o público era o fundador do estabelecimento, Toninho do Escaler, um marinheiro de profissão. Com paixão, ele fez uma ode aos bons tempos.
— O Bom Fim é um lugar mágico — decretou Toninho.
A caminhada durou cerca de uma hora e meia, deixando boa impressão nos participantes que seguiram firmes até o final do roteiro.
— Revivi minha história de vida quando jovem. Todos esses lugares que passamos, eu vivi. Eu estudava na UFRGS e posso dizer que foi um respiro de juventude. Acho que nenhuma cidade brasileira foi tão roqueira quanto a Porto Alegre dos anos 80. A quantidade de bandas de garagem era um absurdo — rememora a bióloga Simone Azambuja.
O Viva Porto Alegre a Pé é um desses raros projetos que sobrevivem a trocas de governos municipais. Ele começou em 2006 e permanece vivo, retomando fôlego após pausa durante o período mais forte da pandemia de coronavírus.
— As pessoas gostam do programa porque acabam conhecendo mais a cidade. É uma ação de educação patrimonial vinculada ao lazer. A gente fala sobre cultura, arquitetura, história, memória e arte — diz a arquiteta Rosilene Possamai, da Diretoria de Patrimônio e Memória da SMC.