As pedras retiradas na terça-feira (7) da calçada em frente à agência da Caixa Econômica Federal da Avenida Osvaldo Aranha, 1.316, no bairro Bom Fim, reabriram um debate sobre a relação entre Porto Alegre e a sua população de rua. A estrutura era uma amostra das instalações existentes na cidade que impedem a acomodação de pessoas que procuram abrigo debaixo de marquises.
O assunto veio à tona com postagens, nas redes sociais, do padre Júlio Lancellotti, de São Paulo. Ele classificou o cenário das pedras na calçada como um caso de aporofobia — ódio aos pobres, nas palavras dele. A GZH, o padre comentou:
— Considero muito importante a atitude da retirada das pedras em frente à Caixa Econômica Federal em Porto Alegre. Espero que essa atitude seja incentivo para que todos os que têm esse tipo de hostilidade de aporofobia mudem a sua atitude e retirem. É muito importante que isso aconteça.
A reportagem circulou por viadutos e bairros na Capital, nesta quarta-feira (8), e encontrou outras intervenções com a mesma finalidade. A prefeitura promete acabar com essas estruturas tidas como arquitetura hostil que se encontram embaixo de viadutos, construídas no passado, e garante que a prioridade do trabalho da Secretaria de Obras e Infraestrutura (SMOI) é a "circulação de pedestres e a ocupação de espaços" (leia nota no final deste texto).
No Centro Histórico, lojas e prédios residenciais ostentam grades de metal fixadas ao chão e nas paredes frontais dos imóveis. Abaixo do viaduto Imperatriz Leopoldina, que faz a Avenida João Pessoa passar por cima da Loureiro da Silva, o novo calçamento instalado com a ciclovia cobriu quase todo o chão, e apenas um canto mostra pedras de paralelepípedo com as pontas viradas para cima, criando o mesmo ambiente inóspito para a população de rua que existia em frente à agência da Caixa. Em outra elevada, que leva o nome do imperador Dom Pedro I, na Avenida Praia de Belas, um estacionamento aberto ao público fica no meio de dois espaços que também já tiveram as pedras tornando a superfície irregular.
— É um espaço amplo e que não é bem utilizado. Poderiam fazer estacionamento público, colocar estações de bicicletas, ocupar melhor — diz Dionata Souza, 32 anos, funcionário de uma loja de móveis que fica em frente ao vão, e diz nunca ter se incomodado com moradores de rua que frequentam o local.
Nas obras públicas, como viadutos, a Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi) diz que não aplica essas práticas desde 2014. O Viaduto Dona Leopoldina, que é palco para manobras de skate e eventos culturais do lado mais próximo ao Centro, mas também abriga usuários de drogas na extremidade oposta, deve receber uma visita técnica ainda em dezembro. A Smoi diz que pretende adaptar este e outros espaços ao conceito de “mobilidade ativa, priorizando a circulação de pedestres e a ocupação de espaços”.
Quando é o caso de um proprietário de loja ou prédio residencial querer afastar moradores de rua de sua fachada construindo algum dispositivo para impedir a sua aproximação, as regras são fiscalizadas pela Secretaria Municipal de Segurança (SMSEG), mas somente se a estrutura invadir o passeio público.
Na cartilha disponibilizada pela prefeitura na internet, a recomendação é que “uma calçada segura deve garantir boa circulação, ser desprovida de obstáculos, com ativa manutenção substituindo-se pisos danificados, livre de depósito de materiais de obra e mercadorias, contêineres para caliças, entre outros”. Também há a sinalização da necessidade de manter um espaço que “não contenha degraus, canaletas, rampas com inclinações excessivas, grelhas e caixas coletoras de água pluvial, entre outros elementos”. Quando a grade ou pedra é colocada em espaço privado, como era no caso da agência da Caixa na Avenida Osvaldo Aranha, ou a dos Correios na Siqueira Campos, a prefeitura não tem responsabilidade.
O arquiteto e urbanista Tiago Barlem, professor na Feevale e doutorando em Planejamento Urbano, afirma que quanto mais qualificado o espaço, melhor ocupado ele será pelas pessoas.
— A curto prazo, a questão da população de rua é mais gestão urbana do que planejamento. Uma solução possível seria utilizar edifícios públicos que não estão cumprindo nenhuma função através de uso temporário. É uma operação relativamente barata instalar um albergue de passagem por um determinado tempo. Outros lugares do mundo já aplicam essa estratégia — analisa.
— A fachada do térreo em várias ruas de Porto Alegre é gradeada. Isso é uma paisagem terrível, acabou com a ideia dos jardins de frente. O impedimento de contato com moradores de rua é uma das tantas representações da desigualdade social em que vivemos — complementa Barlem.
A questão social
Para o secretário de Desenvolvimento Social (SMDS), o sociólogo e professor universitário Léo Voigt, as estruturas criticadas pelo padre Júlio Lancellotti são "meramente simbólicas" dentro do complexo tema dos moradores de rua. Ele explica que a SMDS pretende, ao longo dos quatro anos da atual gestão, diminuir em 80% o número de pessoas que moram na rua.
O plano passa por ampliar vagas e intensificar a adesão regionalizada de quem está nesta situação socialmente vulnerável. Ele ressalta que a pasta investe em albergues e programas de acolhimentos e não incentiva a permanência de homens e mulheres vivendo de maneira fixa nas ruas, ainda que a decisão de buscar ou não os serviços da prefeitura seja de cada indivíduo.
— É tarefa da nossa secretaria mobilizar a população para ajudar no acolhimento dos moradores de rua. Isso se faz com campanha, que ainda não começamos porque a nossa estrutura ainda está sendo reorganizada. É um plano ousado, este crescimento de oferta das vagas e de serviços. Aí sim, tendo condições de receber todo mundo, convidaremos a população em geral através de campanhas — explica Voigt, que opina:
— Os casos de arquitetura hostil são uma questão meramente simbólica neste debate. Porque eles não evitam a existência dos moradores de rua, apenas determina onde eles estarão. Posso instalar uma estrutura que impede que uma barraca seja montada em um lugar, mas isso não vai evitar que ele se acomode em outro viaduto, outra marquise, outra calçada.
A Smoi enviou nota sobre os viadutos com pedras nos vãos internos. Leia a íntegra do texto:
“Em relação à presença da chamada 'arquitetura hostil' em viadutos da Capital, a Secretaria de Obras e Infraestrutura informa que essas intervenções foram executadas no passado levando em conta as diretrizes da época. Atualmente, procurando adequar Porto Alegre às melhores práticas de cidade, a Prefeitura trabalha com o conceito moderno de mobilidade ativa, priorizando a circulação de pedestres e a ocupação de espaços. Nas obras de arte da nossa cidade, nas situações de construções irregulares ou da presença de obstáculos que possam interferir na mobilidade local, a PMPA tem agido nas suas remoções. O Viaduto Dona Leopoldina está dentro do cronograma de inspeções rotineiras da Smoi. A visita técnica ao local deve ocorrer ainda em dezembro.”