Mesmo que pouca gente escute, a história de Porto Alegre é contada todos os dias pelo cimento, pelo aço, pelos tijolos. No mesmo quarteirão, é possível voltar ao século 18 com um sobrado luso-brasileiro, fotografar um prédio centenário de inspiração neoclássica e entrar em uma obra da arquitetura moderna.
— Cada geração grava seu depoimento na arquitetura da cidade — grafa a arquiteta Luisa Durán Rocca, professora do Departamento de Arquitetura e do programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Entender o que informam as linhas, as janelas ou o detalhe do telhado de uma construção demanda algum trabalho, mas habilita a viver um caça-tesouros interessante. E, desde maio, há um mapa para ajudar nessa busca, acessível na tela do celular.
Criado pelos arquitetos e urbanistas Rodrigo Poltosi e Vlademir Roman, o Guia ArqPOA é um site que reúne dezenas de obras de arquitetura e urbanismo que se destacam em Porto Alegre. O usuário escolhe algum prédio no mapa da cidade e confere fotografias e curiosidades sobre ele, gratuitamente.
O material já havia sido lançado em formato de livro em 2017, mas na versão digital possibilita a colaboração de novos autores.
— Tem vindo contribuições de arquitetos e estudantes e sugestões de pessoas de outras áreas. Já estamos recebendo informações para aumentar o guia — conta Poltosi.
Os arquitetos destacam que São Paulo, Rio de Janeiro, Montevidéu, Buenos Aires e até Pelotas e Caxias do Sul já tinham seus guias de arquitetura, e eles sentiam falta de um registro abrangente na capital gaúcha.
— O objetivo do guia online é aumentar o relacionamento das pessoas com a cidade, fazer com que elas aprendam a olhar e passem a conhecer e valorizar seu patrimônio arquitetônico. A cidade é um livro de pedras. Se a gente não lê, não a reconhece como cultura e testemunho da história — diz Roman, parafraseando o filósofo Walter Benjamin.
Porto Alegre ano 250
Porto Alegre completa 249 anos neste 26 de março ainda sob impacto da pandemia do coronavírus. Para o Grupo RBS, a data também marca o início da contagem regressiva para os 250 anos que serão completados no ano que vem. Assim, mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
De uma lista inicial de 200 espaços, os arquitetos selecionaram cem. Priorizaram locais possíveis de visitar, para que o material fosse consumido por moradores e turistas, não só por arquitetos. O projeto foi desenvolvido a partir de um edital lançado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU-RS), através do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS).
O Guia
Pode ser acessado gratuitamente neste link. Já há cem obras arquitetônicas, urbanísticas, paisagísticas, históricas e culturais de Porto Alegre cadastradas, mas a ideia é que a relação seja ampliada. Qualquer pessoa pode participar, submetendo resumos de edificações que ainda não constem no acervo ou em eventuais correções e sugestões. Essa interação se dá por meio de um botão no canto direito do site, “colabore”.
Aprenda a "ler" a arquitetura de Porto Alegre
Entenda quais são os estilos e as referências mais importantes da arquitetura de Porto Alegre e o que eles podem ensinar sobre a história da capital gaúcha
Luso-brasileiro
Também conhecidos como coloniais, os prédios de estilo luso-brasileiro são os mais antigos da cidade: remontam ao começo de Porto Alegre, nos séculos 18 e 19. Os portugueses trouxeram as correntes estilísticas da Europa, adaptando-as aos materiais que encontraram na cidade.
Caracterizavam-se por paredes em taipa ou alvenaria com pintura de cal, janelas guilhotina, de arco abatido, e pelas casas alinhadas em fita, com poucas aberturas, muito simples.
Havia diversos exemplares desse estilo na área central, mas muitos foram postos abaixo na virada do século 19 para o 20, destaca o presidente do departamento do Rio Grande do Sul do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Rafael Passos. Pela renovação, e talvez também pelo desconhecimento da sua importância, foram demolidos.
O Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, na Cidade Baixa, é um dos sobreviventes. Chamado de Solar Lopo Gonçalves, foi construído entre 1845 e 1855, com porão alto e acesso pela escadaria lateral. As janelas frontais têm quadro superior ornado com meias rosáceas. As paredes externas foram construídas em alvenaria e, as internas, em estuque (barro, madeira e folhas de palmeira).
Eclético
Porto Alegre viveu uma transformação arquitetônica no começo do século 20, abusando de um estilo que resulta da fusão de vários: o eclético. Especialista em conservação e restauro do patrimônio cultural e professor da Uniritter, Lucas Volpatto destaca que arquitetos como o alemão Theo Wiederspahn trouxeram da Europa para Porto Alegre esse mix de estilos.
Claro que os prédios podem ter linguagens predominantes, como o neoclássico, uma releitura da arquitetura grega, vista na simetria, nas colunas, no frontão — a Cúria Metropolitana, o Palácio Piratini e o Theatro São Pedro são alguns exemplos encontrados na Capital. Já o antigo prédio dos Correios e Telégrafos, hoje Memorial do Rio Grande do Sul, e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) têm forte influência barroca, e a Catedral Metropolitana pende ao neorrenascentismo.
Mais tarde, ainda viria a art déco. Volpatto lembra que ela chegou com o centenário da Revolução Farroupilha e sua mastodôntica exposição no parque da Redenção, em 1935. É caracterizada pelas linhas retas ou geométricas e pela simplicidade na ornamentação. A Paróquia São Geraldo, no 4º Distrito, e o Posto de Saúde Modelo, no bairro Santana, são exemplos de art déco.
A professora da UFRGS Luísa Rocca também destaca a incidência da art nouveau, expressão francesa para “arte nova”. Esse usa referências a formas naturais, não só de flores e plantas, mas de linhas curvas. Como no Observatório Astronômico da UFRGS, de 1908.
A Casa Godoy, na Avenida Independência, perto da Rua Barros Cassal, é outra obra em art nouveau relacionadas pelo Guia ArqPOA. Esse casarão de 1907 tem frontões curvos e vazados, vitrais, molduras das aberturas curvas e painéis com elementos fitomórficos, com formatos de vegetais tropicais na parte inferior e de carvalho no frontão, onde linhas curvas emolduram a figura de um corvo.
Modernismo
É inevitável lembrar de Oscar Niemeyer ao pensar em modernismo no Brasil. Esse estilo, em que o aço e o concreto começam a ser utilizados de maneiras inovadoras, chegou pela década de 1950 a Porto Alegre, seguindo referências do que estava sendo feito no Rio de Janeiro. Demorou um pouco para ganhar o solo gaúcho porque o eclético bombava no Estado na primeira metade do século 20.
— A sociedade gaúcha estava feliz com a arquitetura dos imigrantes. Resistiu a trocar profissionais maduros, que eles já sabiam que dava certo, por guris recém-formados que vêm do Rio — explica a professora Luisa Rocca, da UFRGS.
O Palácio da Justiça, o Museu Iberê Camargo e o Centro Administrativo Fernando Ferrari são algumas das obras mais importantes do modernismo na cidade. O prédio que abriga as secretarias do Estado tem 22 pavimentos: as fachadas norte e sul apresentam grandes janelas em fita, enquanto as fachadas leste e oeste são grandes empenas curvas em concreto, fazendo uma referência à arquitetura de Niemeyer.
E a cidade tem também um original dele, considerado o maior arquiteto do país. Localizado atrás da Federação Gaúcha de Futebol, o Memorial Luiz Carlos Prestes é uma edificação circular fechada com placas de vidro, que lembra uma nave flutuando. Uma rampa vermelha circunda parte do prédio até o seu acesso. A obra, a única de Niemeyer na Capital, foi inaugurada em 2017.
Contemporâneo
A arquitetura contemporânea, que brilha nos dias de hoje, busca uma continuidade do modernismo, segundo a professora a UFRGS Luisa Rocca, dentro de um leque infindável de propostas. Luisa explica que esse estilo está mais focado no processo do que na forma.
— Uma coisa muito importante é a questão da sustentabilidade. Há obras contemporâneas comprometidas com os recursos naturais — acrescenta.
Muitas vezes, as obras desse período têm formato irregular, janelas em grandes dimensões e, é claro, o apelo ao uso de materiais reutilizáveis. Na esquina da Bastian com a Rua Baronesa do Gravataí, no bairro Menino Deus, a pequena e residencial Slice House (“fatia de casa”, em inglês) foi uma das mapeadas pelo guia ArqPOA. Com uma geometria prismática complexa, a estrutura de concreto moldada in loco é utilizada como planos que se desdobram, não sendo possível distinguir elementos estruturais como colunas e vigas, que acabam se fundindo ao corpo da casa. Os acabamentos metálicos também chamam atenção.
Esta reportagem integra a série que o Grupo RBS preparou para marcar os 250 anos de Porto Alegre, a serem completados em 26 de março de 2022. Até lá, mensalmente, serão publicados em ZH e GZH conteúdos especiais que refletem sobre a identidade da cidade e dos porto-alegrenses.