Cercada de casas de veraneio, hotéis e restaurantes, as praias da Zona Sul eram o destino preferido dos porto-alegrenses nos dias mais quentes, atraindo até turistas argentinos e uruguaios. Uma multidão em trajes de banho já alternou mergulhos ao banho de sol na volta do Gasômetro, e houve uma época em que competições de polo aquático eram realizadas junto ao cais.
Capazes de causar náuseas se trazidas ao contexto atual, essas cenas ocorreram no Guaíba em diferentes décadas do século passado. Faz mais de 50 anos que a poluição torna o lago impróprio para banho na Capital. A exceção fica por conta de praias no extremo-sul do município, em Belém Novo e Lami. Mas seria possível despoluir e tornar balneáveis de novo as regiões mais próximas do Centro?
Teria que mudar a forma que as populações lidam com seus cursos hídricos — e Porto Alegre nunca tratou o Guaíba de acordo com a importância que tem. É algo que o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire já havia constatado na viagem que fez pelo Rio Grande do Sul em 1820. Depois de apontar Porto Alegre como a segunda cidade mais suja que já viu, anotou em seu diário: “os habitantes só bebem água da lagoa e, continuamente, vê-se encher os cântaros no mesmo lugar em que os outros acabam de lavar as mais emporcalhadas vasilhas”.
Dois séculos depois, a gente segue sujando a água que coleta para beber. Estima-se que Porto Alegre ainda deixe de tratar 44 milhões de metros cúbicos de esgoto doméstico por ano, o equivalente a mais de 17 mil piscinas olímpicas.
Mas não é só ela. O engenheiro agrícola Valery Pugatch, presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Guaíba, destaca que o lago recebe contribuição de um terço da área do Rio Grande do Sul. Acabam nele, por exemplo, água do Rio Vacacaí, que passa por Santa Maria, na Região Central, e o Caí, que passa por Caxias do Sul, na Serra. E o pior é a sujeira da Região Metropolitana:
– Chegam no Guaíba dois dos rios mais poluídos do Brasil, que são o Gravataí e o Sinos. Eles trazem poluição da agropecuária, das indústrias. Mas a principal poluição do lago vem do esgoto doméstico.
Despoluir o Guaíba, destaca Valery, parte pelo tratamento de esgoto cloacal na Grande Porto Alegre. GZH pediu às prefeituras os dados atuais de saneamento: Viamão tem 23% do esgoto tratado coletivamente, Novo Hamburgo tem 6,5%, São Leopoldo tem 31,16%, Gravataí, 35,25%, Canoas, 17%, e a Capital, 58%.
Tratamento coletivo de esgoto nas maiores cidades da Região Metropolitana*
- Porto Alegre: 58%
- Viamão: 23%
- Novo Hamburgo: 6,5%
- São Leopoldo: 31,16%
- Gravataí: 35,25%
- Canoas: 17%
*Informações das prefeituras
Todas as cidades têm a meta de coletar e tratar pelo menos 90% do esgoto até 2033, segundo o Marco Legal do Saneamento Básico, sancionado no ano passado. O caminho que tem sido escolhido pelos gestores da região é o de parceria com o setor privado.
A secretária Municipal de Parcerias de Porto Alegre, Ana Pellini, projeta a assinatura de um contrato de uma PPP para 2022. Ainda não foi batido o martelo sobre o modelo de concessão que será adotado. O que foi debatido na audiência pública de fevereiro prevê o repasse da gestão de todos os serviços de saneamento a um parceiro por 35 anos.
O aporte de recursos privados previsto para a qualificação dos serviços seria de aproximadamente R$ 13 bilhões, sendo R$ 2,17 bilhões para investimentos de universalização da coleta e do tratamento de esgotos e para qualificação da água, e R$ 11 bilhões para operação do sistema ao longo do contrato, o que ampliaria para 96% a coleta e tratamento de esgoto nos primeiros 10 anos de contrato.
Enquanto isso não se concretiza, Ana faz um apelo para que moradores que têm a rede de esgoto à disposição, pagam a taxa de coleta, mas se recusam a fazer a ligação ao sistema coletivo, façam essa adequação logo.
– Para não fazer obra, para não arrebentar a garagem, eles não ligam na rede certa. Inclusive em prédios novos.
Cabe ao Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) a verificação de endereços que lançam o esgoto cloacal junto à rede pluvial, que acaba desaguando nos 27 arroios da cidade.
O departamento desenvolve o Programa Esgoto Certo. Equipes uniformizadas e munidas com o crachá funcional pedem licença para entrar nas casas e fazem o teste através da aplicação do corante em pias, tanques ou vasos sanitários. Na sequência, realizam seu rastreamento nas saídas de esgotos pluvial e cloacal. Caso detectado que imóvel não tem a ligação adequada, o proprietário é orientado a fazer a correção e, se não resolver, é multado.
Para saber se seu esgoto para no lugar certo, é possível solicitar a visita de uma equipe do Programa Esgoto Certo pelo canal 156 da prefeitura.
Porto Alegre ano 250
O Grupo RBS preparou uma série de matérias para fazer a contagem regressiva para os 250 anos de Porto Alegre, que serão completados dia 26 de março de 2022. Mensalmente, até o aniversário de quarto de milênio da Capital, publicaremos em Zero Hora e GZH conteúdos que abordarão aspectos fundamentais na tentativa de entender a formação de uma identidade porto-alegrense. As reportagens vão tratar a Porto Alegre das ruas, das pessoas, do futuro, da cultura, do empreendedorismo e das paixões. Esses conteúdos vão lançar um olhar para trás, como forma de compreender o que nos trouxe até aqui, retratar o presente e projetar o amanhã da Capital, sempre com foco voltado a aproximar nosso público da cidade que escolheu viver.
Banho no Guaíba será possível?
Já não é impossível hoje tomar banho no Guaíba na Capital. A Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) divulga no verão relatórios de balneabilidade no extremo-sul da cidade, provando que praias dos bairros Lami e Belém Novo têm condições de receber banhistas.
Essa análise é realizada com base nos padrões determinados pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Para que um ponto seja considerado como próprio para banho, é preciso que quatro das últimas cinco amostras coletadas apresentem menos de 800NMP/100mL (referência que indica o grau de poluição da água). Outro critério é o valor de pH da água: ele precisa ficar entre 6,0 e 9,0.
Ipanema, na Zona Sul, não está tão longe assim de ser considerada própria. Conforme as últimas avaliações do Dmae, a praia até possui períodos de balneabilidade, se analisados períodos inferiores a cinco semanas – mas o regramento é para períodos que considerem as cinco últimas semanas.
Devolver Ipanema para os banhistas é uma promessa antiga. Era assunto corriqueiro na gestão de José Fortunati, à frente do Paço Municipal entre 2010 e 2016, e a entrega dela chegou a ser prevista para 2013. Acreditava-se que a inauguração da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Serraria iria liberar o uso. Essa era uma das obras do Projeto Integrado SócioAmbiental (Pisa), que custaram quase R$ 1 bilhão em valores atualizados pela inflação. Antes da inauguração delas, no início de 2014, a cidade tratava apenas 18% do seu esgoto.
A Diretoria de Tratamento do Dmae já constatou que as águas do Guaíba tiveram melhoria de qualidade após o investimento, mas ainda chegam grandes contribuições de carga poluente pelo Arroio Capivara. O Dmae afirma que está estudando novas formas de melhorar a qualidade da água.
GZH questionou à Smamus se, com obras de saneamento previstas, a intenção é liberar os banhos nas praias menos distantes, mas a pasta não soube responder.
No Centro, é improvável que seja permitido em razão da incidência de poços profundos. Mesmo com as placas proibitivas, todos os anos, há registros de mortes na região. O último afogamento próximo ao Anfiteatro Pôr do Sol foi registrado em abril.
Era uma vez, outro Guaíba
A praia da Pedra Redonda no começo do século 20
Passar o dia de verão na praia da Pedra Redonda era programa de luxo para muitos porto-alegrenses, atraindo até alguns cariocas, paulistas e turistas estrangeiros, segundo a historiadora Janete da Rocha Machado. Muito em razão do caminho: o transporte era feito em uma locomotiva a vapor a partir do centro da cidade, com mais apito e fumaça do que velocidade pela Estrada de Ferro do Riacho.
Com os banhistas, veio a demanda por restaurantes, hotéis, tendas de sorvetes e refrescos, o que acabou sendo importantíssimo para o desenvolvimento da região. Durante cerca de três décadas, estima-se que até 40 mil pessoas por verão rumavam do Centro à Zona Sul para aproveitar as praias
Polo aquático na frente do Mercado Público
Uma foto de 1927 do acervo do Grêmio Náutico União mostra dois times de polo aquático disputando um campeonato no Guaíba, em frente ao Mercado Público. O esporte surgiu em Porto Alegre após a Primeira Guerra e começou a ser praticado no União em 1920. De 1930 a 1943, o time unionista ganhou 11 das 14 disputas. Em 1945, deixou de ser disputado por falta de adversários.
Ainda não tinha acontecido a grande enchente naquela época e não havia o Muro da Mauá. A sede do União e de outros clubes náuticos ficava na Voluntários da Pátria, e a prática de esportes como o polo aquático e natação se dava no Guaíba mesmo, a partir do centro da cidade.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.