Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Anos atrás, num encontro de escritores realizado em Israel, Judith e eu tomamos o café da manhã com Shimon Peres. Hoje presidente de Israel, naquela ocasião Peres estava no limbo político, não ocupava cargo algum. Perguntei a que atribuía a recente derrota do Partido Trabalhista, do qual era líder, nas eleições que resultariam na indicação do primeiro-ministro. Peres pousou a xícara de café, pensou um momento e disse: “Perdemos porque nos acomodamos, porque paramos de lutar por nossas ideias”.
Que ideias eram essas, e que importância tinham, no momento não interessa. O que me impressionou, e continua me impressionando, foi a notável franqueza daquele homem. Afinal, eu não passava de um desconhecido, e ele podia ter me respondido com uma frase qualquer, tipo “política tem dessas coisas”. Mas não, Peres disse o que julgava ser a verdade, e isto revelava uma dimensão moral, a mesma dimensão moral que agora aparece na sua mensagem presidencial sobre o Dia da Independência de Israel (amanhã, 14 de maio) e que está circulando na Internet. Diz Peres: “Praticamente surgido das cinzas dos horrores inenarráveis do Holocausto, Israel vem lutando pela sua sobrevivência. Mas conseguimos transformar o sonho de um lar para o povo judeu em realidade: criamos uma democracia-modelo, um sistema judiciário independente e nos colocamos na vanguarda de áreas como ciência e tecnologia, medicina e agricultura. Alcançamos a paz com o Egito e a Jordânia e esperamos que as negociações de paz com os palestinos tragam frutos. Devemos nos ater aos valores legítimos ditados pelos nossos profetas, um legado que uniu o povo judeu através dos tempos”.
É muito interessante que Peres tenha mencionado os profetas bíblicos. Porque essas singulares figuras faziam exatamente o que ele fez naquele café da manhã: diziam a verdade, por dolorosa que fosse. E a verdade, ao fim e ao cabo, é a grande defesa de seres humanos, de povos e de países. Israel é um triunfo, como diz Peres? Sem dúvida. É impressionante o que aquele povo conseguiu num país minúsculo, carente de recursos naturais – nem água tem – rodeado de inimigos que a todo instante prometem “varrê-lo do mapa”. Se Israel sobreviveu foi exatamente porque corresponde aos valores mais profundos e mais autênticos não do só judaísmo, mas da humanidade. Cometeram erros, os sucessivos governos de Israel?
Cometeram erros, sim. Tardaram a reconhecer a identidade palestina e as legítimas aspirações de um grupo humano que tem muito em comum com os israelenses, além do parentesco étnico. Por outro lado, criaram colônias entregues a fanáticos religiosos que são uma constante dor de cabeça. Isto resultou de previsões equivocadas. Nem todos são profetas.
Queixas e acusações à parte, Israel tem muito a celebrar no seu 60º aniversário. E o presidente Peres, herdeiro de grandes tradições do judaísmo, soube dizê-lo melhor do que ninguém.
Muitos setores do movimento negro não dão importância à Lei Áurea promulgada há exatos 120 anos. Mas se outra utilidade não tiver serve para lembrar que o Brasil foi o último país a abolir a escravatura. Uma dívida que ainda não foi totalmente paga.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
-08/06/2010: "Crimes e erros"
-13/06/2004: "O maratonista cego"
-09/11/2010:" Escritores e preconceito"
-10/10/2004: "Quando eu tinha a tua idade"
-21/11/2010: "O primeiro hippie"
-02/09/1995:"Há algum médico a bordo?"