Cada vez mais, as maiores instituições do mundo da arte buscam maneiras de tornar seus acervos diversos e quebrar a hegemonia masculina e branca de suas coleções. Na esteira desse movimento global – sentido do MoMA ao Masp –, a onda feminista também bateu nas instituições de Porto Alegre, que se prepara para receber uma 12ª Bienal do Mercosul dedicada às mulheres de abril a julho de 2020. O coletivo Mulheres nos Acervos traduziu, em números, a disparidade entre artistas homens e mulheres nas coleções públicas da cidade. O projeto foi lançado no 33º Festival de Arte da Cidade de Porto Alegre, que destacou ainda o trabalho de Natalia Schul, Claudia Paim e do grupo feminista argentino Nosotras Proponemos. Já o Farol Santander inaugurou Estratégias do Feminino, painel da condição da mulher no Brasil com 95 obras de importantes nomes da arte no país. Por outro lado, os artistas continuaram a sofrer ataques e unindo-se contra eles. Confira os fatos que marcaram o ano das artes visuais gaúchas.
História sob revisão
Quatro jovens pesquisadoras capitanearam um projeto que mexeu com as estruturas do sistema de arte em Porto Alegre. O coletivo Mulheres nos Acervos, composto por Cristina Barros, Marina Roncatto, Mel Ferrari e Nina Sanmartin, mapeou a presença de mulheres nos cinco acervos públicos da Capital e deu visibilidade a seus nomes com exposições. Revelou que, entre os mais de 2 mil artistas que assinam as 10 mil obras nos acervos da Capital, apenas um terço é mulher (764).
No primeiro local a receber uma mostra do projeto, a Pinacoteca Aldo Locatelli, em junho, somente 28% dos artistas são mulheres.
Em setembro, o coletivo ocupou outro espaço municipal, a Pinacoteca Ruben Berta, revelando um acervo com apenas 22 artistas mulheres em comparação a 76 homens. Na semana passada, o coletivo inaugurou a mostra Gostem ou Não, com obras do século 19 ao 21, no Margs, onde mulheres representam 35% do total de artistas. As outras duas instituições pesquisadas devem receber mostras em 2020: a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, da UFRGS, e o MACRS, na CCMQ.
Conquista para o MACRS
Após anos de reivindicação, o Museu de Arte Contemporânea do RS (MACRS) chegou mais perto do sonho da casa própria: um espaço de 2,3 mil metros quadrados no Quarto Distrito (com galpão e pátio) foi doado à instituição, que atualmente ocupa duas galerias da Casa de Cultura Mario Quintana. Anunciada para maio de 2020, na próxima Noite dos Museus, a primeira fase da construção é de reforma do espaço atual. Em um segundo momento, será realizado um concurso para o projeto de construção do novo museu.
Outra instituição ligada à Secretaria Estadual de Cultura, o Margs segue pleiteando mais espaço para armazenar seu acervo, após mobilizar cerca de 150 pessoas para um abraço no edifício vizinho, da Alfândega da Receita Federal.
Opinião sob censura
Novamente, uma das exposições mais faladas do ano foi pouco visitada: Independência em Risco foi suspensa menos de 24 horas depois de sua inauguração, em 2 de setembro, na Câmara Municipal de Porto Alegre. A mostra era composta por charges de nomes importantes do cartum gaúcho, como Edgar Vasques, Celso Augusto Schröder, Leandro Bierhals e Edu. A presidente da Casa, a vereadora Mônica Leal (PP), cancelou a exibição alegando que seu conteúdo era ofensivo, especialmente um desenho do carioca Carlos Latuff em que Jair Bolsonaro lambe os sapatos de Donald Trump. Após denunciar o ato de censura, a Grafar (Grafistas Associados do Rio Grande do Sul) conseguiu na Justiça o direito de reabrir a mostra.
Um desenho para se despedir
Em 7 de setembro, Feriado da Independência, a artista e professora Teresa Poester reuniu 23 artistas que, vestidos de preto e com canetas esferográficas vermelhas, produziram um desenho abstrato de 26 metros quadrados. A performance, intitulada Até que Meus Dedos Sangrem, foi filmada e exposta junto ao desenho, que consumiu 600 canetas esferográficas vermelhas. Até maio de 2020, o resultado permanece exposto na Sala João Fahrion, no 2º andar da Reitoria da UFRGS, junto com outros 30 trabalhos inéditos de Teresa. A mostra foi uma despedida da artista, que se mudou para a França após se aposentar como professora do Instituto de Artes da UFRGS.
E o Santander Cultural virou Farol
Após 15 anos de atividade, o Santander Cultural virou Farol Santander, seguindo o nome da unidade aberta em 2018 no centro de São Paulo. O centro cultural ficou fechado por três meses para reforma e, depois de algum mistério, foi reaberto em março. Com a programação cultural bastante reduzida, o edifício passou a cobrar entrada para as exposições. O segundo andar ganhou uma mostra permanente e interativa sobre a memória de Porto Alegre e do banco. Já o térreo recebeu duas grandes exposições: Roda Gigante (foto ao lado), da paulista Carmela Gross, e Estratégias do Feminino, mostra coletiva realizada como compensação pelo cancelamento de Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, dois anos antes. Ao invés de realizar a outra mostra acordada com a Justiça, sobre intolerância, a instituição pagou multa.
Luz no túnel da Fundação Iberê Camargo
Após mais de dois anos funcionando só aos finais de semana, em abril, a Fundação Iberê Camargo passou a funcionar de quarta-feira a domingo. Sob o comando do diretor superintendente Emilio Kalil, a instituição continuou a buscar recursos para seu funcionamento, mas conseguiu concretizar uma ambiciosa programação trazendo grandes nomes da arte brasileira – Wesley Duke Lee, Daniel Senise e José Bechara – e mundial – a famosa Spider (foto acima) de Louise Bourgeois e as pinturas da inglesa Cecily Brown. Ao mesmo tempo, a fundação olhou para o cenário local, exibindo seu importante acervo de gravuras e homenageando o Grupo de Bagé, e investiu no programa educativo. Anunciados para 2019, Vik Muniz e Arthur Lescher acabaram ficando de fora da programação.
Danúbio Gonçalves (1925-2019)
O 21 de abril foi de luto no Rio Grande do Sul: o desenhista, gravador e pintor bajeense Danúbio Gonçalves morreu dormindo, aos 94 anos. O artista foi um dos responsáveis por introduzir a linguagem moderna na arte gaúcha com o Grupo de Bagé, ao lado de Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti e Carlos Scliar – homenageados na exposição homônima atualmente em cartaz na Fundação Iberê Camargo. Como professor, formou gerações de artistas, e como artista, deixou de legado o registro das duras condições de trabalho nas charqueadas e na mineração, além de representações realistas da vida no campo. Em novembro, um triste epílogo: seu Memorial da Epopeia Rio-grandense Missioneira e Farroupilha, instalado em 2008 próximo ao Mercado Público, foi alvo de pichação.
Novo ponto de encontro
Inaugurado em maio, no quarto distrito, o Linha lançou um novo modelo de espaço cultural em Porto Alegre, combinando bar, galeria, sala para oficinas e ateliês compartilhados onde artistas trabalham à vista dos visitantes. Com agenda movimentada, o local virou ponto de encontro para profissionais e amantes das artes visuais. Foram 11 exposições de curta duração e 10 oficinas, além de sessões de cinema, debates e performances, entre outras atividades. Neste final de ano, os ateliês recebem uma nova leva de artistas. A seleção está aberta em bit.ly.com/residencialinha2020. O Linha fica no número 540 da Av. São Pedro e pode ser visitado gratuitamente de terça a sábado, das 18h à meia-noite.
Noite pra lá de popular
O 18 de maio ficou para a história de Porto Alegre. A 4ª Noite dos Museus levou cerca de 105 mil pessoas a circular pelos 14 centros culturais que integraram a sua programação. O número é superior ao público das três edições anteriores juntas. Apesar das longas filas, a multidão aproveitou o clima agradável para circular pela cidade à noite com mais segurança, conhecer melhor instituições como o Museu da Brigada Militar (novidade deste ano) e curtir a programação, que foi além da música e das artes visuais para incorporar teatro, cinema e dança. Dois pontos altos foram a projeção, na fachada branca da Fundação Iberê Camargo, de um trecho do filme Frankenstein (1931), de James Whale, com trilha sonora ao vivo da banda Fu_k the Zeitgeist, e a batalha de poesia falada do grupo Slam Peleia no Margs. Fica a pergunta: qual será o público do evento em 2020?
100 anos de um mestre
O centenário de Francisco Stockinger (1919-2009), austríaco que, ao lado de Iberê Camargo e Vasco Prado, formou a tríade de mestres da arte modernista no Rio Grande do Sul, foi celebrado em 7 de agosto. Um selo comemorativo foi lançado pelo Instituto Estadual de Artes Visuais (IEAVi) em parceria com outras instituições públicas e homenagens foram realizadas por várias galerias de Porto Alegre. O destaque foi a exposição Stockinger 100 Anos, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), que mostrou uma seleção de 100 trabalhos, compondo um panorama das diferentes fases do artista, com destaque para as séries de Gabirus e Guerreiros.