Se a temporada de 2019 no teatro, na dança e no circo tivesse de ser descrita em apenas uma frase, seria o ano em que os artistas redescobriram a importância de estar juntos.
Trabalhar em grupo não é novo: as artes cênicas são coletivas por ofício, e mesmo um monólogo exige uma equipe nos bastidores. A diferença deste ano foi a percepção de que o caminho é a união entre os grupos em atividade, uma forma de encontrar soluções para as dificuldades vividas pelo setor cultural: da crise de financiamento às acusações infundadas aos artistas da parte de representantes governamentais. Essa união se traduziu no lançamento da MOVE – Rede de Artistas de Teatro de Porto Alegre e na continuidade dos festivais e dos projetos de ocupação de espaços culturais, além das celebrações de aniversário de companhias.
Não há como esconder: os tempos são duros. Mas a retrospectiva das artes cênicas no Estado mostra que, assim como no poema de Drummond, uma flor pode brotar no meio do asfalto.
Artistas em Rede
Tempos estranhos exigem estratégias inovadoras de sobrevivência. Foi assim que nasceu a MOVE – Rede de Artistas de Teatro de Porto Alegre, reunindo profissionais para articular formas de incentivar a produção local e aproximá-la ainda mais do público. A iniciativa surgiu no final de 2018, mas o lançamento oficial foi em abril deste ano, em uma noite repleta de atrações no Centro Municipal de Cultura, na Capital, com entrada franca. As ações podem ser acompanhadas no site moveteatro.com.br e no Facebook (facebook.com/moveteatro).
Os festivais resistem
Uma das principais atrações dos palcos do Rio Grande do Sul neste ano não foi um homem de teatro, mas o líder indígena Ailton Krenak. Porta-voz histórico dos povos originários, Krenak entusiasmou o público do 26º Porto Alegre em Cena em setembro, na estreia do espetáculo O Silêncio do Mundo, criado ao lado da performer Andreia Duarte durante uma residência artística na cidade. Foi mais uma prova da resistência dos grandes festivais de artes cênicas em tempos de crise. Antes, em maio, o 14º Festival Palco Giratório Sesc/POA destacou o tocante musical Elza, que levou ao palco sete artistas negras para representar Elza Soares. O ano começou com o Porto Verão Alegre em sua brava missão de movimentar a cena local na Capital e terminou com o 5º Santa Maria Sesc Circo, que se consolida no calendário cultural.
Adeus a um mestre
De vez em quando surge uma obra que consegue sintetizar o imaginário de uma nação. No teatro, uma delas foi Macunaíma, de Antunes Filho, inovadora adaptação do livro de Mário de Andrade estreada em 1978 e apresentada no ano seguinte em Porto Alegre, no Teatro Presidente. Foi uma entre as muitas obras notáveis assinadas por Antunes, um dos maiores diretores de teatro brasileiros, que morreu em maio, aos 89 anos. Mestre dos palcos, ele montou Shakespeare, Beckett, Nelson Rodrigues e outros autores, tornando-se reconhecido pelo trabalho realizado a partir de 1982 no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), localizado no Sesc Consolação, em São Paulo.
Outra perda de 2019 foi a do ator e diretor gaúcho Julio Saraiva, aos 70 anos, que atuou em Hoje É Dia de Rock (1976), dirigido por Dilmar Messias, e A Morte e a Donzela (1997), montagem do Ói Nóis Aqui Traveiz. No teatro de bonecos, em que também se destacou, dirigiu em 1994 Maria Farrar, baseado em Brecht.
Celina em turnê nacional
Há tempos admirada no Rio Grande do Sul como atriz e professora, Celina Alcântara levou para fora do Estado a peça A Mulher Arrastada, de 2018, que circulou neste ano por diversas regiões do Brasil pelo Circuito Palco Giratório Sesc. Escrita por Diones Camargo a partir de um caso real que chocou a sociedade e dirigida por Adriane Mottola, a peça traz Celina dando voz a Claudia Silva Ferreira, uma mulher negra que morreu no Rio, em 2014, aos 38 anos, ao ser baleada pela polícia, e que teve seu corpo arrastado ao cair do porta-malas de uma viatura.
Mapa dos Teatros Gaúchos
Partindo da premissa de que o Rio Grande do Sul precisa se conhecer, as jornalistas Michele Rolim e Silvia Abreu criaram um banco de dados com informações sobre teatros e espaços culturais destinados a espetáculos em 19 cidades do Estado. Financiado pelo Pró-Cultura RS, o projeto Cartografia dos Palcos é o resultado das visitas de Michele e Silvia a essas cidades com a fotógrafa Tânia Meinerz.
O material do site cartografiadospalcos.com.br – disponível para consulta gratuita – tem como objetivos facilitar a circulação de artistas e grupos e colocar em contato gestores e produtores para formar uma rede de cooperação.
Projetos de ocupação
Se os festivais de artes cênicas são fundamentais, também é preciso lembrar os projetos que incentivam a produção local e promovem a ocupação de espaços culturais. É o caso do Ponto de Teatro, que oportunizou a estreia de seis espetáculos de teatro e dança no Instituto Ling (como Sambaracotu, do Canoas Coletivo de Dança); o Transit, que mais uma vez viabilizou duas montagens locais de um mesmo texto traduzido da língua alemã no Instituto Goethe de Porto Alegre; e o Quartas Dramáticas, com leituras encenadas realizadas pela união da ATO Cia. Cênica, da Cia. Indeterminada e da Cia. Stravaganza.
Dramaturgia em alta
A ano de 2019 comprovou o bom momento da dramaturgia gaúcha. Uma das novidades foi a Fábrica de Experiências Cênicas, que montou a peça F.R.A.M.E.S., de Diones Camargo. Também neste ano Viviane Juguero teve seu texto Cavalo de Santo incluído na antologia nacional Dramaturgia Negra (Funarte), e Altair Martins publicou sua segunda peça, Hospital-Bazar (Edipucrs). O governo do RS divulgou o edital Serafim Bemol, que oferece R$ 100 mil para cada um entre quatro montagem de textos de gaúchos. O edital tem seu nome inspirado no pseudônimo de Simões Lopes Neto (1865-1916), cujo Teatro Completo foi publicado neste ano pela editora Movimento.
Atuador homenageado
Um dos fundadores do Ói Nóis Aqui Traveiz, grupo de teatro referencial que completou 40 anos em 2018, Paulo Flores sempre defendeu o princípio da criação coletiva. Mas em 2019 ganhou os holofotes com sessões da peça Meierhold, estreada no final de 2018, ao lado da atriz Keter Velho, e foi tema de uma biografia na série Gaúchos em Cena, escrita por Roger Lerina. Também durante o Porto Alegre em Cena, Paulo recebeu o Prêmio Braskem em Cena de melhor ator por Meierhold. O Ói Nóis tem uma campanha de financiamento recorrente para viabilizar suas atividades em benfeitoria.com/terreiradatribo.
Trabalho continuado
A temporada foi generosa em aniversários de importantes grupos de artes cênicas do Estado, entre eles: Conjunto Os Gaúchos (60 anos), Afro-Sul Odomode (45 anos), Cia. Muovere (30 anos, na foto), Ballet Vera Bublitz (há 40 anos em Porto Alegre), Cia. de Flamenco Del Puerto (20 anos), Cia. Rústica, Circo Híbrido, Cia. Espaço em BRANCO e Teatro Sarcáustico (os quatro com 15 anos) e Macarenando Dance Concept e Projeto Gompa (ambos com cinco anos). No final de 2019, nasceu uma nova companhia de dança, a FlashBlack, formada por jovens negros da periferia da Capital oriundos das Escolas Preparatórias de Dança.
Aos amantes de ópera
Porto Alegre é uma cidade apaixonada por ópera, e o ano foi pródigo nesse sentido. O Quatrilho, composta por Vagner Cunha a partir do romance de José Clemente Pozenato, estreou em 2018, mas neste ano fez nova turnê pelo Estado e voltou a se apresentar na Capital, sempre com regência de Antonio Carlos Borges-Cunha.
A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre seguiu sua nova tradição de encenar uma ópera diferente por ano com Orfeu e Eurídice, de Gluck, regida por Evandro Matté. Também sob a batuta de Matté, a Orquestra de Câmara Theatro São Pedro voltou a encenar óperas. Apresentou em 2019 um programa duplo: Il Maestro di Cappella, de Cimarosa, e Il Maestro di Musica, atribuída a Pergolesi.