Por Daniela Kern
Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS
Porto Alegre parece estar mesmo vivendo sua primavera feminista.
Antes de mais nada, é preciso salientar que essa primavera se alastra por outras cidades do país, como São Paulo, que desde 2017 tem tido uma sucessão de grandes exposições dedicadas a artistas mulheres, como Guerrilla Girls: Gráfica, 1985-2017 (no Masp, em 2017); Mulheres Radicais: Arte Latino-americana, 1960-1985 (Pinacoteca de São Paulo, 2018); Maria Auxiliadora: Vida Cotidiana, Pintura e Resistência (Masp, 2018); Djanira: a Memória de Seu Povo; Tarsila Popular; Histórias das Mulheres Artistas até 1900; e Histórias Feministas: Artistas Depois de 2000 (Masp, 2019).
Na capital gaúcha, que acolherá em 2020 uma edição da Bienal do Mercosul dedicada às relações entre arte e feminismo, com curadoria de Andrea Giunta, várias exposições sobre o tema têm ocorrido neste ano, como a que está aberta na Pinacoteca Ruben Berta, Artistas Mulheres: Tensões e Reminiscências, organizada pelo coletivo Mulheres nos Acervos. Agora, desde o dia 14, contamos também com Estratégias do Feminino, no Farol Santander, com curadoria de Helena Severo, Daniela Thomas, Fabrícia Jordão e Rita Sepulveda de Faria, mostra que dá espaço a artistas mulheres de diferentes gerações e estratos sociais.
De caráter algo enciclopédico, pela variedade de perspectivas abordadas, tem como eixo curatorial predominante as relações entre privado e público, como se depreende dos blocos temáticos criados para a organização dos trabalhos: O Corpo que Habito, A Casa e a Rua, Dobra e Costura, No Calor da Luta, Diários e Listas. Em A Casa e a Rua, subcapítulo de sua tese de doutorado intitulada Atravessamentos Feministas (2018), Talita Trizoli nos mostra, aliás, o quanto essa relação entre privado e público tende a ser desequilibrada na história das mulheres, pois para elas foi considerado por muito tempo como adequado apenas o espaço doméstico.
Os textos curatoriais que apresentam essas seções têm orientação feminista, com o recurso a conceitos dos quais o feminismo se apropriou, como lugar de fala, performance de gênero, interseccionalidade, dominação e subalternidade, identidades e representatividade, além da menção à historiografia da arte excludente, uma pauta abraçada pelas historiadoras da arte da segunda onda do feminismo. Essa vinculação com a perspectiva feminista nos convida a percorrer caminhos alternativos na exposição, para além dos estruturados nos cinco blocos. Podemos ver, como as curadoras alertam, diferentes gerações de artistas que, à luz da história do feminismo, produzem obras que às vezes dialogam, direta ou indiretamente, mesmo quando não se identificam como feministas elas próprias, com as tendências das diferentes ondas feministas dos séculos 20 e 21.
A primeira onda feminista (da segunda metade do século 19 à primeira do 20) lutava antes de mais nada por direitos iguais, ao voto, por exemplo. Sob essa onda atuaram Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Maria Martins e Djanira. A busca por oportunidades iguais às dos homens no campo das artes é uma tônica no percurso das artistas, ao mesmo tempo em que a associação entre arte popular ou naif e arte feita por mulheres continua bastante estimulada.
Na segunda onda feminista (décadas de 1960, 70 e 80), temos o famoso lema “O Pessoal É Político”. Obras como as de Anna Maria Maiolino, Lenora de Barros e Leticia Parente, que foram escolhidas para a mostra, dialogam com esse lema. Por outro lado, temos também nessa onda uma geração de artistas que opta por não explorar temáticas populares ou naif em seus trabalhos, como Mira Schendel e Tomie Ohtake, e se dedica à abstração.
A terceira onda (décadas de 1990 e 2000) abriga a teoria da performatividade de gênero de Judith Butler, as perspectivas descolonial e queer, para citarmos apenas algumas. A maioria dos trabalhos de Estratégias do Feminino é dos anos 2010, mas parte deles aborda ainda temas que são discutidos com força desde a terceira onda, como os de Élle de Bernardini, Sallisa Rosa e Lyz Parayzo.
Na quarta onda (década de 2010) ocorre a repercussão e multiplicação das pautas feministas nas redes sociais, com a divulgação de temas das outras ondas. Esse é o caso da interseccionalidade, conceito de segunda onda elaborado por Kimberlé Crenshaw que trata da necessidade de cruzamento de categorias como raça, gênero e classe social e que tão bem conversa com trabalhos de Angélica Dass, Arissana Pataxó e Mônica Ventura.
Seja seguindo o percurso curatorial ou esse outro, alternativo, a história da arte brasileira que está sendo reescrita em Estratégias do Feminino é uma história que certamente precisa ser vista, redimensionada e recontada.