Dois anos após a polêmica suspensão da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, o Farol Santander cumpriu uma parte do acordo firmado com o Ministério Público Federal (MPF) em 20 de dezembro de 2017 com a abertura de uma nova mostra, intitulada Estratégias do Feminino.
Voltada a questões LGBT, Queermuseu foi encerrada em 10 de setembro de 2017, 30 dias antes da data prevista, depois que protestos acusaram as obras de fazer apologia a crimes e ofender símbolos religiosos. Um inquérito do MPF concluiu que as acusações eram falsas e o encerramento da mostra constituiu "lesão à liberdade de expressão artística".
Em decorrência disso, o Farol Santander se comprometeu a realizar duas novas exposições em um prazo de 18 meses, vencido em junho de 2019, caso contrário a instituição arcaria com multa de R$ 800 mil.
Pelo acordo, uma das mostras deveria abordar a temática da intolerância, dando ênfase a questões de gênero, orientação sexual, étnicas, de raça e à liberdade de expressão. Ao invés disso, a instituição assinou um Aditivo ao Termo de Compromisso com o MPF afirmando que pagará R$ 424.391,30 como forma de compensação pela não realização da exposição. O valor deverá ser destinado a atividades artísticas, culturais, projetos e financiamentos de ONGs e entidades da sociedade civil e/ou de atividades por estas desenvolvidas relacionados à temática da Queermuseu. Procurado por GaúchaZH no início da tarde desta sexta-feira, o Farol Santander não se manifestou sobre o motivo da decisão até o horário de publicação deste texto.
O procurador da República Enrico Rodrigues de Freitas, que assinou o termo em 16 de outubro de 2019, visitou a nova mostra e concluiu que sua realização ajuda a compensar pelo fechamento da Queermuseu:
– Ela preenche os requisitos do acordo formulado. Obviamente a temática da Queermuseu era outra, mas o resultado (do acordo) eram duas mostras. Uma delas é com esta temática da mulher. É uma mostra interseccional, que trabalha a questão da mulher negra, tem obra de artista trans e abrange questões de gênero.
Segundo o procurador, o prazo para a realização da exposição era flexível:
– A gente tem que entender a dificuldade de encontrar uma mostra, construir. A questão do prazo foi sempre bastante flexível, o importante era o resultado, eles realizarem as mostras num prazo razoável. E o prazo é razoável.
Já a segunda exposição deveria tratar de "formas de empoderamento das mulheres na sociedade contemporânea, bem como a diversidade feminina, incluindo questões culturais, étnicas e de raça, de orientação sexual e de gênero". É com essa temática que a mostra Estratégias do Feminino dialoga. A exposição foi inaugurada na última terça-feira pelo centro cultural do banco em Porto Alegre, o Farol Santander. Responsável pela curadoria, Helena Severo afirma não ter se referido à exposição cancelada, mas pelo menos um nome se repete: o de Lygia Clark, que tinha cinco obras expostas na Queermuseu e agora está representada com a exibição de cenas do documentário O Mundo de Lygia Clark. Em 2017, os herdeiros da artista protestaram contra o encerramento da exposição Queermuseu.
– Nós curadoras tivemos a preocupação de trabalhar com a pluralidade e com as expectativas da questão feminina hoje no Brasil. Nunca essa Queermuseu foi uma referência. Não tomamos ela como parâmetro nem como referência em momento nenhum. Fizemos um trabalho completamente autoral ali. É o que nós pensamos, produto da nossa vivência – explica a curadora.
Estratégias do Feminino
A exposição Estratégias do Feminino pretende ser um painel da condição da mulher no Brasil com obras produzidas apenas por mulheres brasileiras oriundas de coleções de diferentes regiões do país. São 95 trabalhos assinados por 53 artistas, incluindo desde referências históricas da arte brasileira, como Maria Martins, Djanira e Tarsila do Amaral até nomes contemporâneos, como Regina Parra e Dora Longo Bahia.
Convidada pelo braço cultural do banco Santander para assumir a mostra, a curadora Helena Severo explicou o seu conceito em entrevista por telefone:
– A grande questão foi revelar questões referentes à condição feminina no Brasil. Tivemos toda uma preocupação de lidar sempre com a pluralidade, cobrir todas as regiões do país, trazer uma representatividade nacional e intergeracional. Temos gerações de artistas do final do século 19 até jovens que estão iniciando a carreira agora, questões de etnias e de gênero também.
Para garantir um panorama mais completo, Helena convidou outras curadoras, Daniela Thomas, Fabrícia Jordão e Rita Sepulveda de Faria. Elas dividiram a exposição em cinco núcleos: No Calor da Luta; A Casa e a Rua; Dobras e Costura; Diários e Listas e O Corpo que Habito.
O racismo é o assunto de algumas das obras em destaque na mostra, como o sinal luminoso feito especialmente para a exposição: Luz Negra (2009), de Mônica Ventura. Trata-se de uma frase em neon que diz "Uma Mulher Negra Feliz é um Ato Revolucionário" (o texto é de Juliana Borges). Outro trabalho, logo na entrada, é
280 Chibatadas (2018), no qual a artista Angélica Dass confronta suas próprias fotos de família com declarações racistas colhidas da internet.
– É muito bonito porque é a história de vida dela contada através de reminiscências. Tem foto com a mãe e o pai, dançando balé, fazendo a primeira comunhão. Você vai vendo as fotos e também a brutalidade da sociedade em relação ao fato de ela ser negra. A questão do preconceito é socialmente construído para destruir a vida.
A exposição recebeu classificação indicativa de 14 anos, e não exibe trabalhos com violência ou sexo explícito. Na maioria das obras, a condição da mulher é tratada como metáfora, como no vídeo A Frio (2017), de Berna Reale.
– É uma bela metáfora para a vida, a artista acha que a luta da mulher é como enxugar gelo – comenta a curadora.
No núcleo de obras sobre o corpo feminino, chama a atenção a impactante série de pinturas A Perigosa (2019), de Regina Parra, e um dos poucos trabalhos com nudez da mostra, Estudo para Desenho de Corpo Feminino (2006), de Marcela Tiboni. Ali também está um trabalho abstrato da artista trans Élle de Bernardini. Talvez a obra que mais remete à temática de Queermuseu é o vídeo Faz que Vai, no qual artistas trans dançam músicas de Carnaval. O trabalho é assinado por Barbara Wagner, recentemente consagrada por representar o Brasil na Bienal de Veneza.
Estratégias do Feminino
- Farol Santander (Rua Sete de Setembro, 1.028), Centro Histórico, Porto Alegre.
- Visitação: de terça a sábado, das 10h às 19h; domingo e feriado, das 11h às 18h, até 22 de dezembro de 2019.
- Ingressos: R$ 15. Entrada gratuita no último domingo de cada mês.