Resistência (The Creator, 2023) é uma aventura de ficção científica que, por um lado, surpreende: não demoniza a inteligência artificial nem custou uma fortuna para imaginar um futuro distópico e preenchê-lo com cenas de ação. Por outro, o filme dirigido por Gareth Edwards e estrelado por John David Washington é uma colcha de retalhos, reciclando ideias alheias e costurando muito mal os elementos emocionais — o modelo, embora não assumido, é Interestelar (2014), de Christopher Nolan, de onde se importou também o compositor Hans Zimmer. Inspirações declaradas são, logicamente, mais antigas, pois dá certo charme ser "referencial": o cineasta citou Lua de Papel (1973), Apocalypse Now (1979), Blade Runner (1982), E.T. (1982), Akira (1988), Rain Man (1988) e Baraka (1992).
O filme que acabou de estrear na plataforma Star+ foi lançado mundialmente no dia 26 de setembro, no Fantastic Fest, na cidade texana de Austin, nos EUA. Quem esteve por lá, como integrante do júri oficial, foi João Pedro Fleck, diretor do Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, o Fantaspoa, que em 2024 realizará sua edição de 20 anos. Fleck testemunhou em primeira mão o auê feito em torno de Resistência — "A produção levou para a sessão alguns robôs com inteligência artificial, tornando a experiência ainda mais imersiva e inesquecível", contou. Apesar do roteiro cheio de clichês e banalidades, diante do visual impressionante e do ritmo trepidante não faltaram espectadores embasbacados. Alguns definiram como a melhor sci-fi dos últimos anos.
O irônico é que o longa-metragem escrito pelo britânico Edwards com o estadunidense Chris Weitz — repetindo a parceria de Rogue One: Uma História Star Wars (2016) — começa como se fosse uma produção maniqueísta dos tempos da Guerra Fria. Essa referência parece ser assumida: telejornais com o estilo narrativo e a textura de imagem daquela época apresentam a evolução da inteligência artificial (IA). Robôs se tornaram "mais humanos do que os humanos", sendo empregados nas mais diferentes funções, desde fritar hambúrgueres a cuidar da segurança pública. Mas, como na franquia O Exterminador do Futuro (1984-2019), na qual a Skynet decidiu instaurar o holocausto nuclear, em Resistência uma IA detona, em Los Angeles, uma ogiva que incinera 1 milhão de pessoas.
A trama de fato começa em 2065, quando humanos seguem travando uma guerra contra a inteligência artificial. Se dos anos 1950 à década de 1980 assistíamos à tensão entre EUA e URSS, Resistência funde o trauma estadunidense do 11 de Setembro com o medo da expansão política, tecnológica e comercial da China: temos um Ground Zero, como o que surgiu em Nova York após o atentado de 2001, e o inimigo está abrigado na chamada Nova Ásia.
O futuro retratado pelos diretores de fotografia Greig Fraser — ganhador do Oscar por Duna (2021) e que merecia ter sido indicado por Batman (2022) — e Oren Soffer, com design de produção de James Clyne, mescla cenários reais e computação gráfica. Em entrevistas, Gareth Edwards disse que não queria trabalhar exclusivamente em estúdio, com as telas verdes ao fundo para a posterior inserção digital de ambientes e objetos. Também não havia orçamento para a construção de grandes sets — o custo informado é de US$ 80 milhões, pouco menos da metade do supracitado Duna, para ficarmos no terreno da ficção científica. Saiu mais barato viajar por oito países, que incluem locações como a cidade de Tóquio, praias da Tailândia e os vulcões do Himalaia. Os efeitos visuais também emprestam veracidade ao filme: raras vezes a tecnologia pareceu tão orgânica.
Vide, por exemplo, as cenas em que o protagonista interpretado por John David Washington — que trabalhou com Christopher Nolan em Tenet (2020) — coloca suas próteses de braço e de perna. Esse personagem, chamado de Joshua (em português, Josué, cujo nome quer dizer "Deus é a salvação"), é um agente das forças especiais dos EUA que está infiltrado entre os sofisticados robôs da Nova Ásia, os simulantes. Lá, ele acabou se apaixonando — mas é um romance sem química nenhuma, bastante artificial, com o perdão do trocadilho — pela personagem encarnada por Gemma Chan, de Podres de Ricos (2018) e Eternos (2021), Maya (que pode significar, entre outras possibilidades, "mãe" ou "ilusão"). A missão de Joshua é localizar e matar Nimrata, o Criador do título em inglês. Trata-se de um misterioso arquiteto de IA que teria desenvolvido uma arma capaz de acabar com a guerra. Ou seja, derrotar a humanidade.
Normalmente, eu daria um alerta de spoilers para o que vem a seguir.
Mas é óbvio que os militares estadunidenses, como o general Andrews (Ralph Inneson, de A Bruxa e Sede Assassina) e a coronel Howell (Allison Janney, Oscar de atriz coadjuvante por Eu, Tonya), não são santos. E é claro que encontraremos afeto, honra e outras virtudes entre os guerrilheiros da Nova Ásia, como Harun, vivido pelo japonês Ken Watanabe (que foi dirigido por Edwards em Godzilla e por Nolan em Batman Begins e A Origem).
Cartazes de Resistência, por sua vez, entregam que Joshua terá a companhia de uma criança, Alphie (a estreante Madeleine Yuna Voyles), em uma jornada que remete à da série The Mandalorian (2019-). Qualquer espectador acostumado a filmes do gênero saberá somar dois mais dois para desvendar um suposto mistério e vislumbrar o desfecho da história.
O que surpreende em Resistência é que, em meio a um debate global sobre os riscos da inteligência artificial, o filme lance um olhar tão benevolente — Alphie chega a ser uma fofurice. E é muito irônico que a estreia cinematográfica tenha ocorrido na semana em que o Sindicato dos Roteiristas dos EUA e os grandes estúdios (como a Disney, distribuidora do longa-metragem por meio do 20th Century Studios) chegaram a um acordo para encerrar uma greve que durou 148 dias. Um dos principais pontos de discussão era justamente o uso de IA em Hollywood. Os atores, que se juntaram à paralisação, temem que suas imagens possam ser alteradas ou replicadas por meio da tecnologia — uma situação que é inclusive mostrada na trama. Os roteiristas dizem que as produtoras estão começando a substituir o seu trabalho através do uso de ferramentas semelhantes ao ChatGPT, que são capazes de criar ou recriar textos de forma automatizada — não seria um espanto se revelassem que o script de Resistência nasceu assim.