A data central para compreender a mudança na terceira onda no Rio Grande do Sul é 27 de fevereiro. Nesse dia, o governo do Estado iniciou uma ofensiva contra o coronavírus, tentando reverter o cenário de descontrole que havia se estabelecido ao longo daquele mês.
O governo determinou a aplicação da bandeira preta em todo o território gaúcho e decidiu suspender a cogestão – regra que permite flexibilizações pelos prefeitos. Assim, todas as cidades deveriam respeitar as regras mais duras, com fechamento da maioria das atividades não essenciais – como comércios, bares, restaurantes, academias e espaços de lazer e cultura.
A bandeira preta sem flexibilizações seguiria em vigor por três semanas, mas os primeiros sinais foram percebidos desde o primeiro dia, com a queda no índice de mobilidade dos gaúchos, ou seja, na movimentação média das pessoas entre as suas moradias e os seus locais de trabalho, de lazer e de consumo. Cinco dias depois, começou a cair a curva de novas contaminações por covid-19.
Passados mais 15 dias, a queda teve início no número de pessoas internadas com covid-19 em leitos clínicos (de enfermaria). O efeito dominó foi sentido, por fim, nos indicadores de internações em UTIs (leitos de alta complexidade) e mortes. A sequência de reduções é bem conhecida de quem estuda o tema e se repete mundo afora, com resultados diferentes conforme o rigor das medidas de distanciamento social e de acordo com o momento da pandemia em que são aplicadas.
GZH ouviu cinco diferentes estudiosos, que acompanham o dia a dia da pandemia no Rio Grande do Sul. Eles afirmam que, cientificamente, a única explicação para a mudança repentina nos indicadores no Estado após a vigência da bandeira preta foi o fechamento de atividades econômicas e sociais.
— Existe uma relação científica entre a aplicação das últimas medidas no Estado e a melhora nos indicadores. Se as pessoas estão próximas umas das outras, há mais chance de transmissão. Se uma pessoa encontra outras cem pessoas ou encontra outras 10 pessoas ou encontra apenas uma pessoa ao longo do dia, isso muda completamente a chance de contaminação. O vírus não sobrevive no meio ambiente, o vírus só sobrevive passando de uma pessoa para outra. Quando diminui o contato, diminui a transmissão — explica Alexandre Zavascki, infectologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Ele acrescenta que, se as medidas tivessem sido mais severas, teria sido possível evitar mortes no Rio Grande do Sul.
A velocidade de descida da curva é proporcional ao grau de restrição de mobilidade. Está descendo devagar porque as medidas não foram tão severas. Pela situação do sistema hospitalar, o ideal seria uma restrição bem mais severa
ALEXANDRE ZAVASCKI
Infectologista e professor da UFRGS
— A velocidade de descida da curva é proporcional ao grau de restrição de mobilidade. Está descendo devagar porque as medidas não foram tão severas. Pela situação do sistema hospitalar, o ideal seria uma restrição bem mais severa — aponta Zavascki.
O epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que coordena a pesquisa Epicovid-RS sobre os índices de contaminação por covid-19 nas maiores cidades gaúchas, defende que o Estado obteria resultados mais efetivos se tivesse realizado um lockdown, em vez do fechamento parcial definido em bandeira preta.
— O Rio Grande do Sul não fez lockdown. Adotou medidas da bandeira preta. Mesmo com as restrições subótimas, conseguiu minimizar o cenário caótico. Todos os indicadores mostram melhora após o uso da bandeira preta com suspensão da cogestão. Cientificamente, é possível afirmar que a melhora é decorrente das restrições. Se as restrições fossem mais intensas, a queda seria ainda maior, e isso favoreceria tanto a saúde pública quanto a economia — aponta Hallal.
Em um lockdown, além de haver restrições ao movimento das pessoas (por exemplo, entre bairros ou cidades), ocorre o fechamento de todas as atividades não essenciais. O Rio Grande do Sul optou por restrições menos severas, permitindo que seguissem funcionando fábricas não essenciais, construção civil e parte das atividades de telentrega, entre outros setores econômicos que geram a mobilidade diária de trabalhadores. Além disso, foram registrados casos de descumprimento da bandeira preta, como festas clandestinas e lojas recebendo clientes.
A epidemiologista Lucia Pellanda, reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), endossa o argumento de que o Estado poderia obter resultados melhores e de forma mais rápida se tivesse adotado medidas mais duras.
— A redução que percebemos nas internações é coerente com a redução na mobilidade e com a redução nos casos. Diferentemente do que fez recentemente Portugal, por exemplo, no Rio Grande do Sul não tivemos o mesmo rigor nas medidas nem a mesma adesão da população. Assim, não conseguimos interromper a transmissão. Conseguimos apenas amenizar — explica a epidemiologista.
Diferentemente do que fez recentemente Portugal, por exemplo, no Rio Grande do Sul não tivemos o mesmo rigor nas medidas nem a mesma adesão da população. Assim, não conseguimos interromper a transmissão. Conseguimos apenas amenizar
LUCIA PELLANDA
Epidemiologista, reitora da UFCSPA
Referência no Rio Grande do Sul em estatística envolvendo doenças, a professora Suzi Camey, da UFRGS, comemora os primeiros resultados obtidos pelas restrições das últimas semanas. Mas alerta que, em fevereiro, a piora se deu de forma muito veloz e, agora, com o fechamento parcial que foi adotado, a melhora está ocorrendo de forma lenta.
— O ideal seria a gente baixar a curva, no mínimo, tão rápido quanto ela subiu. Essa deveria ser a nossa meta. Mas, sim, as restrições funcionaram. Veja que as curvas estavam crescendo exatamente até que as medidas foram tomadas. Só houve a reversão das curvas de casos e de internações depois de as restrições serem adotadas. Além disso, já se tem um número suficiente de estudos científicos que mostram a eficiência da redução de mobilidade para controle da pandemia — explica a professora.
O cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19, que estuda o comportamento da pandemia nos diversos Estados brasileiros e em outros países, afirma que as medidas foram tomadas com atraso no Rio Grande do Sul.
Quanto antes se faz a medida, antes ela faz efeito. Se a gente deixa para desacelerar o foguete quando já está no alto, vai gastar mais energia. Esse é o caso do Rio Grande do Sul
ISAAC SCHRARSTZHAUPT
Cientista de dados, coordenador da Rede Análise Covid-19
— Se a gente deixa para desacelerar o foguete quando já está no alto, vai gastar mais energia. Esse é o caso do Rio Grande do Sul. Cada minuto e cada dia, em uma curva exponencial, geram muitos novos casos — aponta Schrarstzhaupt.
O cientista de dados também ressalta que a única explicação para a melhora nos indicadores do Rio Grande do Sul são as restrições adotadas:
— Não há outra explicação para o caso do Rio Grande do Sul porque todas as categorias de mobilidade só caem a partir de 27 de fevereiro, quando o Estado fica em bandeira preta, com suspensão da cogestão. Ou seja, um decreto faz diferença na pandemia? Um decreto bem executado faz diferença, sim. O que não adianta é adotar medidas que não provoquem a redução da mobilidade das pessoas.
RS não conseguiu antecipar a terceira onda, diz especialista
O ano de 2021 começou com leve queda nos principais indicadores da pandemia no Estado. Contudo, entre o fim de janeiro e o início de fevereiro, a curva de contaminações mudou de direção e começou a subir bruscamente.
Na segunda semana de fevereiro, o contágio já ocorria de forma descontrolada, ainda que explosão de casos ainda não fosse perceptível nas medições estaduais. Segundo os especialistas, como não há programa de testagem em massa e de rastreamento, um aumento abrupto de casos pode não ter sido percebido pelas autoridades. Apenas dias ou semanas depois de aumentarem os casos, quando parte dos contaminados precisa de atendimento médico, é que fica evidente o novo comportamento da pandemia.
— Como existe uma defasagem de tempo entre aumentarem as infecções e as hospitalizações, estamos sempre (medindo) com atraso. Até janeiro, isso não foi um problema. A velocidade de transmissão estava baixa. Quando os indicadores de hospitalização cresciam, dava tempo de tomar medidas e reverter. Com essa mudança de velocidade na transmissão do vírus, a gente não tinha como tomar a decisão antes. Quando o indicador de hospitalização mostrou que a curva estava crescendo rapidamente que as ações de restrição foram tomadas — declara Suzi Camey, que integra o comitê científico consultado pelo governo do Estado.
O epidemiologista Pedro Hallal reforça a falta que faz uma testagem em massa para monitorar, em tempo real, o comportamento da pandemia no Estado:
— Se tivéssemos o (monitoramento do) Rt (a taxa de transmissão) em tempo real, poderíamos ter previsto um pouco antes. A falta de um acompanhamento baseado no Rt nos prejudica. Por que não temos? Para ter o dado em tempo real, a gente teria que fazer testagem em larga escala. No Rio Grande do Sul, a gente tem dados melhores do que no resto do Brasil, mas falta esse dado muito importante.
A gente levou 15 dias (em fevereiro) para perceber que a queda (em janeiro) era falsa. Na verdade, era uma estabilização
SUZI CAMEY
Professora de Epidemiologia da UFRGS
Na terceira semana de fevereiro, a explosão de contágios começou a aparecer nos hospitais, o que acendeu a luz de alerta das autoridades estaduais. Enquanto o governador Eduardo Leite avisava aos gaúchos que o Estado estava, repentinamente, “no pior momento” da pandemia, os hospitais começavam a sentir o peso da terceira onda, que se refletiria, ao longo de março, no colapso das UTIs e em recordes de mortes.
— A gente levou 15 dias (em fevereiro) para perceber que a queda (em janeiro) era falsa. Na verdade, era uma estabilização — relembra Suzi.
A primeira medida foi tomada em 20 de fevereiro, quando o governador decidiu proibir atividades noturnas (das 22h às 5h). Três dias depois, enquanto ainda buscava consenso político para adotar restrições maiores, ampliou a suspensão, estabelecendo o fechamento generalizado entre 20h e 5h.
Em 25 de fevereiro, seguindo alerta dos técnicos de que a pandemia avançava em ritmo exponencial e não havia mais tempo para buscar consensos, Leite decidiu aplicar a bandeira preta e suspender temporariamente a cogestão – medida que entraria em vigor em 27 de fevereiro e surtiria efeito nas semanas seguintes, como demonstrado nos gráficos.
Na oportunidade, Leite também anunciou uma nova trava de segurança no modelo de distanciamento controlado, com objetivo de evitar um futuro colapso no sistema de saúde. Pela nova regra, sempre que a relação entre leitos livres e ocupados estivesse em nível crítico, abaixo de 0,35, o Estado todo entraria em modo de bandeira preta.
Governo do RS avalia que restrições foram adequadas
Os dois secretários estaduais diretamente envolvidos com o controle da pandemia no Rio Grande do Sul avaliam que a melhora nos números se deve, diretamente, às medidas adotadas. Arita Bergmann, da Saúde, diz que os números evidenciam o sucesso das restrições aplicadas desde o fim de fevereiro. A secretária também entende que o sistema de bandeiras conseguiu antecipar o avanço da terceira onda, ponderando que a explosão de casos se deveu à nova variante, mais transmissível, e ao aumento de circulação de pessoas durante o verão.
— Houve resultados positivos, aconteceram melhoras expressivas, e a comprovação científica está nos números. Entendo que há pelo menos três fatores para a evolução da pandemia em fevereiro, mas que são difíceis de monitorar, porque dependem de comportamentos da população. Primeiro, o verão. As pessoas passaram a circular muito mais, em férias. Outro fator foi a vacinação, que começou em 18 de janeiro. O anúncio da vacina pode ter dado uma falsa impressão de segurança sanitária. E, ainda, a entrada da variante P.1, mais agressiva, e que circulou rapidamente. Eu não concordo que o modelo não nos tenha dado suficientemente o alerta — afirma.
Talvez pelo fato de termos outras condições socioeconômicas, outras contingências, não conseguimos tomar medidas ainda mais duras
LUÍS LAMB
Secretário estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia
Luís Lamb, secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia – e coordenador dos comitês científico e de dados da pandemia no Estado – endossa o peso da nova variante:
— O que alguns especialistas estão dizendo é que esta variante é quase uma nova pandemia. O modelo do distanciamento controlado vem sendo aperfeiçoado ao longo da pandemia, e não acredito que ele tenha tido responsabilidade (no tempo de reação). A responsabilidade, entre aspas, é das variantes muito mais agressivas, que exigem medidas sanitárias diferentes das anteriormente adotadas. Esta pandemia é um aprendizado contínuo.
O secretário também aponta que as medidas adotadas foram proporcionais à realidade social e econômica do Estado:
— Outros países tomaram medidas restritivas mais duras e mais alongadas. O Reino Unido, por exemplo. Mas evidentemente é outro contexto social e econômico. Talvez pelo fato de termos outras condições socioeconômicas, outras contingências, não conseguimos tomar medidas ainda mais duras.
Gráficos
Veja abaixo os gráficos detalhados sobre mobilidade, casos, internações e óbitos por covid-19, no Rio Grande do Sul. Os gráficos trazem a marcação do período em que foi aplicada a bandeira preta, sem flexibilizações municipais (cogestão). A maioria dos dados foi apresentada com cálculo de média móvel de sete dias (a média móvel reduz as distorções causadas por variações diárias e mostra com mais clareza o movimento das curvas).
Variação de mobilidade
O gráfico abaixo mostra a média móvel de variação da mobilidade das pessoas no Rio Grande do Sul, entre janeiro e março. Os dados são disponibilizados pelo Google Mobility, a partir do rastreamento anônimo de celulares. A comparação é com o mesmo dia da semana, no período pré-pandemia.
É possível ver a queda na mobilidade da população, a partir de 27 de fevereiro, quando entra em vigor a bandeira preta sem flexibilizações, em quatro tipos de locais: varejo e lazer, parques, transporte público e ambientes de trabalho.
Média móvel de casos de covid-19
O gráfico abaixo mostra a média móvel diária de casos confirmados de covid-19, por data de início dos sintomas (relatada pelo paciente). É possível ver que, aproximadamente três dias depois da aplicação da bandeira preta sem flexibilizações, a curva muda de direção e o número de novas contaminações começa a cair. Os dados mostram toda a série histórica, desde o início da pandemia no RS.
Os dados de casos por data de início de sintomas são inseridos sempre com algum atraso no sistema. Logo, quanto mais recente a data, mais desatualizados estão os valores. Por esse motivo, a recomendação de especialistas é desconsiderar o período mais recente da curva. Neste gráfico, são apresentados os dados até 31 de março de 2021.
Média móvel de pacientes com covid-19 em leitos clínicos
O gráfico abaixo mostra a média móvel diária de pacientes com confirmação da covid-19 internados em leitos clínicos. Também chamados de leitos de enfermaria, os leitos clínicos são vagas hospitalares para atendimento de baixa e média complexidade. É possível perceber a mudança no comportamento da curva cerca de três semanas depois da aplicação da bandeira preta sem flexibilizações. Especialistas explicam que a queda nas internações clínicas é consequência direta da queda, dias antes, no número de casos.
Média móvel de pacientes com covid-19 em UTIs
O gráfico abaixo mostra a média móvel diária de pacientes com confirmação da covid-19 internados em UTIs. Os leitos de UTI são vagas de alta complexidade, para pacientes em estado grave e gravíssimo. É possível perceber a mudança no comportamento da curva cerca de um mês depois da aplicação da bandeira preta sem flexibilizações. Especialistas explicam que a queda nas internações em UTIs é consequência direta da queda, dias antes, nos números de casos e de internações leves.
Pacientes com suspeita e confirmação de covid-19, em todos os leitos
Diferentemente dos gráficos de leitos anteriores, que abrangem apenas pacientes com confirmação de covid-19, os dados abaixo incluem pessoas com suspeita da doença. Além disso, considera tanto as internações em leitos clínicos quanto em UTI. Ele também não está apresentado por média móvel, como os outros acima. Assim, é possível ver os números absolutos, dia a dia, de internações pela doença. O recorde ocorreu em 15 de março de 2021, com 8.935 pessoas internadas em todo tipo de leito hospitalar com suspeita ou confirmação da doença, no Rio Grande do Sul.
No gráfico abaixo, é possível perceber a mudança no comportamento da curva a partir de 15 de março de 2021, duas semanas depois da aplicação da bandeira preta sem flexibilizações. A queda nas internações é consequência da baixa no número de casos, percebida dias antes.
Mortes por covid-19, por data em que ocorreu o óbito
O gráfico abaixo mostra a média móvel diária de mortes por covid-19, conforme a data de ocorrência do óbito. É possível ver que aproximadamente três semanas depois da aplicação da bandeira preta sem flexibilizações a curva muda de direção e começa a cair o número de mortes pela doença. Os dados mostram toda a série histórica, desde o início da pandemia no RS.
No gráfico abaixo, é possível perceber a mudança no comportamento da curva a partir de 20 de março de 2021. A queda nas mortes pela doença ocorre, segundo especialistas, como reflexo da redução no número de casos e internações.
Os dados de mortes por data de ocorrência são inseridos sempre com algum atraso no sistema. Logo, quanto mais recente a data, mais desatualizados estão os valores. Por esse motivo, a recomendação de especialistas é desconsiderar o período mais recente da curva. Neste gráfico, são apresentados os dados até 31 de março de 2021.